quarta-feira, 7 de abril de 2021

Retrato íntimo e glamouroso de mulheres trans na Paris dos anos 60

Gosto muito quando eu encontro fotos e histórias do passado que deixam claro que o movimento transgênero não é "novidade da geração mimimi". Já trouxe aqui coleções antigas como as fotos da Casa Susanna e a exposição Uma história secreta de Cross-Dressers. Dessa vez encontrei o trabalho do fotógrafo Christer Strömholm que registrou o cotidiano das mulheres trans com quem ele conviveu em Paris durante década de 1960.

“Essas são imagens de pessoas cujas vidas compartilhei e que acho que compreendi. Estas são imagens de mulheres – nascidas biologicamente como homens – que chamamos de 'transexuais'. Quanto a mim, eu as chamo de 'minhas amigas da Place Blanche'. Era então – e ainda é – sobre como obter a liberdade de escolher a própria vida e própria identidade", escreveu Strömholm na época da publicação das fotos.

As fotografias em preto e branco, tiradas à noite com a luz disponível, mesclam fotografias de rua e retratos e são, por sua vez, glamourosas e corajosas. Elas capturam uma Paris perdida, desprezível mas elegante, subterrânea mas extravagante, em uma época em que o General de Gaulle estava no poder e pretendia criar uma França ultraconservadora que ecoasse seus estritos valores católicos romanos. Nessa época as travestis eram consideradas foras da lei, regularmente abusadas e presas pela polícia por serem “homens vestidos de mulher fora do período de carnaval”.

Nana. Paris, 1959
Adaptado de New York Times

As fotos tiradas por Christer Strömholm das mulheres com quem ele conviveu compõem um retrato íntimo e sensível de mulheres transgênero décadas antes do movimento ter qualquer visibilidade popular.

Em 1959, Christer Strömholm, então um fotógrafo sueco pouco conhecido, encontrou seu caminho para Paris e para um grupo de pessoas que iriam transformar sua vida, e ele a delas.

O senso de família de Strömholm foi desbotado de maneira sombria pelo suicídio do seu pai e pelo novo casamento de sua mãe com um rico corretor de navios. Quando foi para Paris, ele abdicou o seu status de burguês e se juntou a um grupo de mulheres transgênero desamparadas que viviam na região da Place Blanche de Paris, praça onde se encontra o famoso cabaré Moulin Rouge, e que rapidamente se tornariam seu clã adotivo. “Essa era a família dele, essas garotas”, disse seu filho Joakim Strömholm.

Suas amizades verdadeiras eram com “as pessoas mais indesejadas de Paris”, acrescenta Joakim. “Ele enxergou a beleza delas. Não foi nada voyeurístico, escandaloso, foi apenas uma vida normal que ele seguiu ”.

Cobra. Paris, 1960
Kismie. Paris, 1962
Sabrina. Paris, 1967

As fotos permaneceram guardadas até 1983, quando foram publicadas como um livro, “Les Amies de Place Blanche” (“As amigas da Place Blanche”). Começa com uma breve introdução escrita pelo fotógrafo: “Este é um livro sobre insegurança. Um retrato de quem vive uma vida diferente na grande cidade de Paris, de pessoas que suportaram a aspereza das ruas. ... Este é um livro sobre a busca da identidade própria, sobre o direito de viver, sobre o direito de possuir e controlar o próprio corpo.”

Strömholm morava nos mesmos hotéis que as mulheres que fotografou. Ele comeu com elas, bebeu com elas, saiu para a cidade com elas. Ele levava sua câmera Leica e alguns rolos de filme quando saíam à noite e, ao voltar para o hotel, os revelava em seu quarto. “Se as fotos estivessem mal expostas ou se eu tivesse cometido um erro técnico, não importava. Eu ainda teria outras noites pela frente ”, escreveu ele.

Lady Leopard em uma feira. Paris, 1954-55
Carla e Zizou na Brasserie Graff. Paris, 1963
Feira de diversões. Paris, 1954-55

O livro e a obra foram divulgados como um álbum de família, mas é, na verdade, um retrato chocantemente íntimo e sensível de mulheres transgênero décadas antes de tais representações se tornarem populares ou mesmo conhecidas. Muitas das mulheres no livro eram profissionais do sexo ou artistas performers em cabarés (e ocasionalmente em shows de aberrações). Embora algumas tenham se tornado mulheres da alta sociedade, a vida na Place Blanche era precária. O trabalho de Strömholm não foge dessa realidade, mas, como um todo, sua obra se concentra na dignidade dos indivíduos presentes.

“Quando se aproximou o amanhecer, por volta das seis da manhã, o metrô estava reabrindo”, escreveu ele. “Bebemos nosso chocolate quente; comprei o jornal. Caminhamos silenciosamente ao longo da avenida, subimos a rue Lepic para voltar aos nossos pequenos quartos de hotel. Em Paris, era de manhã, mas para as amigas da Place Blanche ainda era noite. Minhas amigas viviam reunidas em um mundo à parte, um mundo de sombras e solidão, ansiedade, desesperança e alienação. A única coisa que exigiam era ter o direito de ser elas mesmas, não serem forçadas a negar ou reprimir seus sentimentos, terem o direito de viver suas próprias vidas, de serem responsáveis, de estarem à vontade consigo mesmas. Nada mais. Tratava-se então – e ainda se trata – da conquista do direito à própria vida e identidade.”

Sabrina. Paris, 1967
Mimosa no Hotel Pierrots. Paris, 1963

As mulheres que aparecem no trabalho de Strömholm são brincalhonas (ou não), sensuais (ou não), engajadas (ou não) – isto é, elas mesmas, cheias de vida e complexidade, humanas. Talvez seja deprimente para uma obra ser elogiada por mostrar a humanidade de seus sujeitos humanos, mas o fato da questão é que naquela época, e ainda hoje em dia, as pessoas transgênero eram vistas como esquisitices a serem investigadas, ridicularizadas e/ou abusadas. No entanto, Strömholm e seu trabalho enxergaram uma realidade diferente.

“Olhando para trás, todos esses anos, todos esses esforços, essas lutas para me tornar eu mesma, tudo o que tive que passar não foi feito em vão”, escreveu Nana, uma das melhores amigas de Stromhölm naquele período, em um ensaio incluído no o relançamento de 2011 do livro. "Sou eu mesma."

Cobra e Caprice. Paris, 1961
Nana. Paris, 1959
Gerty. Hamburgo, Alemanha, 1962
Belinda. Paris, 1967
Panama. Paris, 1968
Nana. Paris, 1962
Jacky. Paris, 1961
Suzanne e Mimosa
Suzanne e Mimosa. Paris, 1962
Cynthia
O Artista e Jacky. Paris, 1962

Nascido em Estocolmo em 1918 e falecido em 2002, Christer Strömholm morou em Paris durante as décadas de 1950 e 1960 e foi nesse período que desenvolveu seu estilo particular de fotografia de rua e fez seus famosos retratos na Place Blanche.

Visto como o “pai” da fotografia sueca, foi o primeiro fotógrafo escandinavo do pós-guerra a obter reconhecimento internacional. Também ativo na educação fotográfica, ele co-fundou a academia Fotoskolan em Estocolmo em 1962, onde seus alunos incluíam, entre outros, Anders Petersen e o cineasta Bille August.

1 Comentário(s)
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Um comentário:

Unknown disse...

A tecnologia evoluiu do processo químico de foto em preto e branco para o digital em cores ultravariadas mas o sentimento crossdresser continua o mesmo.