Fiquei tão encantado pelo texto Meu primeiro passeio como mulher que publiquei na semana passada que resolvi buscar mais informações a respeito da revista alemã Das 3. Geschlecht publicada entre 1930 e 1932. Primeiro eu gostaria de citar o site The Weimar Project que está trabalhando para traduzir e publicar todas as edições em inglês e torná-las acessíveis para qualquer pessoa. Fora isso, achei outro texto que apresenta o contexto alemão da época e detalha bem a história do periódico.
Traduzido de The Paris Review
Hans Hannah escreveu sobre o seu primeiro passeio para a edição inaugural de O Terceiro Sexo (Das 3. Geschlecht), provavelmente a primeira revista do mundo dedicada a questões trans. Publicado pela primeira vez em Berlim em 1930, O Terceiro Sexo circulou nos anos finais da República de Weimar, o experimento democrático do país alemão entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Depois que os nazistas tomaram o poder, eles destruíram a editora e a revista foi amplamente esquecida. Como resultado, a maioria dos relatos atuais cita os Estados Unidos dos anos 1950 como o berço dos periódicos trans. No entanto, a recente republicação em 2016 de O Terceiro Sexo pela Bibliothek rosa Winkel revive vozes perdidas do estranho passado alemão e recupera um notável pedaço da história trans.
A partir do século XIX, a Alemanha era intimamente associada à homossexualidade. Os ingleses falavam do german custom (costume alemão), os franceses se referiam ao termo vice allemande (vício alemão) e os italianos chamavam os homens e mulheres homossexuais de "berlinenses". Pessoas Queer existiam em toda a Europa, com certeza, mas os pensadores alemães naquela época estudaram ativamente as sexualidades não heteronormativas e debateram abertamente os direitos das pessoas queer, inaugurando o campo da sexologia. Na primeira década do século XX, mais de mil trabalhos a respeito de homossexualidade foram publicados em alemão. Pesquisadores da Inglaterra ao Japão citaram sexólogos alemães como especialistas e muitas vezes publicaram seus próprios trabalhos na Alemanha antes de publicar nos seus países de origem.
A República de Weimar (1919-1933), o ápice do modernismo, testemunhou uma nova liberalização e experimentação social. Fritz Lang estreou seu filme expressionista Metropolis em 1927, Alfred Döblin publicou seu romance vertiginosamente inovador Berlin Alexanderplatz em 1929, e no ano seguinte Hannah Höch revelou sua fotomontagem dadaísta Marlene. E ao lado de reinventar as formas tradicionais de expressão artística, os alemães começaram a questionar os papéis de gênero e as identidades sexuais. Como observa o historiador Clayton Whisnant, “Talvez mais do que em qualquer outro lugar, a Alemanha Weimar tornou-se associada à experimentação na sexualidade”. Berlim era indiscutivelmente a capital homossexual da Europa. Em 1900, mais de cinquenta mil gays e lésbicas viviam lá e inúmeros outros a visitavam em busca de amizade, amor e sexo. Em 1923, cerca de cem bares gays em Berlim atendiam a diversos grupos: homens e mulheres, velhos e jovens, ricos e trabalhadores. Discotecas como o Mikado, o Zauberflöte e o Dorian Gray tornaram-se locais de interesse internacional, e os elaborados bailes queer da cidade atraíram a atenção mundial. As associações ofereciam oportunidades de socialização e organização política. Crucialmente, regras afrouxadas de censura permitiam a publicação de dezenas de romances gays polpudos, periódicos queer e até mesmo anúncios pessoais. O escritor britânico Christopher Isherwood, cujo relato que abordou o período dos seus trinta na Alemanha inspirou o musical Cabaret, colocou de forma simples: “Berlim significava meninos”. Em 1928, o poeta W. H. Auden descreveu de forma semelhante a capital alemã como "o devaneio do sodomita". Em seu famoso guia da cena lésbica berlinense do mesmo ano, Ruth Margarete Roellig concluiu: “Aqui cada um pode encontrar sua própria felicidade, pois fazem questão de satisfazer todos os gostos”.
A experiência foi diferente para pessoas trans. O Terceiro Sexo trazia o subtítulo “As travestis”, mas na época, observa a historiadora Laurie Marhoefer, o termo tinha significados diferentes para pessoas diferentes. Os falantes de alemão estavam desenvolvendo um vocabulário crítico para descrever a expansão de identidades reconhecidas. Karl-Maria Kertbeny cunhou a palavra homossexual em 1869, e em 1910 Magnus Hirschfeld inventou o termo travesti. Descreveu travestis e transexuais. Segundo autorrelatos contemporâneos, algumas travestis se consideravam homossexuais, mas a maioria não. Muitos usavam roupas tradicionalmente associadas ao sexo oposto apenas em ocasiões especiais. Outros viveram plenamente como o gênero diferente do seu sexo de nascimento. A maioria parecia interessada em ser passável e aderir às expectativas de respeitabilidade, enquanto uma minoria procurava desafiar a ordem normativa. Cirurgias de afirmação de gênero já estavam disponíveis – a primeira dessas operações foi realizada em 1920 por, sem surpresa, um médico alemão – mas era algo incomum. Da perspectiva de hoje, portanto, não está claro se um indivíduo que se identificou como travesti na Alemanha dos anos trinta, incluindo Hans Hannah Berg, era o que hoje consideraríamos transgênero, não binário, travesti ou algo completamente diferente. Na primeira edição de O Terceiro Sexo, um ensaio do Dr. Wegner reconhece a riqueza do termo. “Assim como as pessoas são diferentes em sua aparência externa e atitudes internas, o mesmo ocorre com as características das travestis.” Muitos ativistas queer na República de Weimar temiam que a população de pessoas com variação de gênero fosse muito fragmentada. Pessoas trans não eram tão visíveis ou tão organizadas quanto gays e lésbicas. Friedrich Radszuweit, o líder da Federação para os Direitos Humanos e editor de vários periódicos queer, viu uma solução. Para promover uma comunidade trans, ele produziu a revista O Terceiro Sexo.
A revista continha uma mistura de artigos científicos, histórias de ficção, colunas de conselhos e ensaios autobiográficos, como a contribuição de Hans Hannah Berg. O Terceiro Sexo teve como objetivo fornecer segurança, oferecendo dicas, aumentando a confiança e garantindo aos leitores que eles poderiam viver suas vidas verdadeiras sem máscaras. (Algo parecido com o que eu tento fazer com o meu blog desde 2015!)
As imagens da revista, intercaladas ao longo de cada assunto, muitas vezes não tinham relação com os artigos. Eram uma mistura de fotografias profissionais e fotos espontâneas fornecidas pelos leitores, exibindo a gama vibrante da existência de variantes de gênero. Alguns retratam pessoas vestidas com trajes formais, como vestidos e smokings. Outros exibem indivíduos em trajes elaborados, como uma fantasia de Cleópatra. A maioria das imagens retrata pessoas com roupas do dia a dia: vestidos simples com aventais brancos, camisas e gravatas de algodão, lederhosen (traje típico alemão). Um tema comum, no entanto, une as imagens: quase todos os indivíduos aparecem contra fundos brancos e cinza. Uma tristeza inegável permeia as imagens. O cenário gay de Berlim pode ter agitado a noite. Mas quando a casa noturna Zauberflöte apagava suas luzes piscantes e abaixava sua música estridente, muitos de seus visitantes voltavam para casa e se escondiam até o próximo anoitecer.
O Terceiro Sexo ajudou a criar um senso de comunidade. Anunciava festas, reuniões e serviços especiais. Os leitores aguardavam ansiosamente as novas edições, devorando-as em poucas horas, quando finalmente chegavam às bancas. Freqüentemente, eles o liam em grandes grupos – apesar de frustrar as intenções da editora que queria aumentar as assinaturas. Tinha até um círculo de leitores no interior que pediam para suas amigas de Berlim que lhes enviassem um exemplar depois de terminar de lê-lo. Outros os encontravam em espaços públicos, estrategicamente deixados para trás por leitores que faziam questão de divulgar a revista. Muitos dos artigos científicos populares buscavam assegurar aos leitores que não estavam sozinhos. Um artigo documentou a longa história das pessoas trans desde a Antiguidade. Outro proclamou a base biológica para expressões de gênero variantes. Uma leitora anônima, escrevendo uma resenha de O Terceiro Sexo em uma revista popular de lésbicas, expressou alívio ao saber que não estava sozinha.
A revista não era apenas para a comunidade de gênero em expansão. Por mais que buscasse confortar e moldar a identidade interna daquele grupo heterogêneo, também pretendia educar os cisgêneros. Os artigos defendiam direitos e proteções iguais para indivíduos trans. Contribuições de ficção ofereceram lições para pais, colegas e vizinhos de pessoas trans, como o conto “Girlboy” (garota-garoto) da primeira edição. A narrativa começa com uma moleca polonesa chamada Selma, com mãos grandes, cabelo curto e ausência de qualquer estereótipo de charme feminino. Um agrimensor alemão alojado na casa de sua família ouve sem julgar seus sonhos de construir pontes e a chama de "garota-garoto" de brincadeira. Enquanto os pais de Selma imploram que ela mude, o alemão insiste que ela pode ser quem ela quiser. Anos depois, de volta à Alemanha, o agrimensor recebe um convidado desconhecido da Polônia. “Selma finalmente realizou o desejo de seus pais”, ri a visitante, “e mudou a si mesma”. Depois de ser intimidada na escola, declarada criminosa e enviada para um sanatório, Selma foi operada e “tornou-se um homem de verdade”. O agrimensor o acolheu sem hesitar, hospedando-o enquanto ele se dirigia à Suíça para estudar engenharia. Em parte fantasia de uma sociedade liberal utópica e em parte lição para aliados em potencial, a história era uma entre uma dúzia de peças de ficção publicadas no periódico inovador.
A revista entrou em colapso em maio de 1932, após apenas cinco edições. À medida que as liberdades se expandiram na República de Weimar, os conservadores sentiram que havia uma ameaça à cultura "moral" tradicional. Homossexuais e pessoas trans eram vistos como especialmente perigosos, capazes de corromper a juventude e devastar taxas de natalidade. Enquanto a cena queer florescia, a polícia mantinha listas de desviantes sexuais e prendia violadores da velha lei anti-sodomia da Prússia. Grupos religiosos, políticos e de pureza moral pressionaram por leis de censura mais rígidas para proibir as chamadas publicações sujas com conteúdo sexual. Então, em janeiro de 1933, os nazistas tomaram o poder. Poucos meses após a nomeação de Hitler como chanceler, os nazistas fecharam muitos dos clubes para gays, lésbicas e travestis. Revistas queer foram fechadas e títulos queer removidos das livrarias como parte da "Campanha por um Reich Limpo" dos nazistas. Qualquer coisa considerada “sujeira” foi banida da vista do público. Em maio daquele ano, estudantes nazistas invadiram o Instituto de Ciências Sexuais de Magnus Hirschfeld e saquearam sua biblioteca de mais de 12 mil livros. Com a ajuda de milícias paramilitares, eles queimaram os livros nas ruas de Berlim, destruindo muito do registro histórico da vida queer de antes da Segunda Guerra Mundial. A imprensa do Radszuweit foi fechada e seus arquivos perdidos. Não há registro de quantas pessoas leram ou se inscreveram no periódico O Terceiro Sexo, e seus colaboradores permanecem em grande parte não identificados. Como a maioria dos autores, como Hans Hannah Berg, escreveu sob pseudônimos e as fotos não mencionavam o assunto ou o nome do fotógrafo, a vida e o destino dos participantes desse projeto permanecem sendo um mistério até hoje.
No entanto, sua importância histórica é clara. No final do seu passeio, Hans Hannah se sentia confiante e segura de si. Para ela, "foi uma bênção, pela primeira vez, livrar-se da máscara e apresentar seu verdadeiro eu diante de olhos humanos". Ela estava visível e empoderada a ponto de poder ser ela mesma. Dezenas de leitores escreveram para a editora com suas próprias histórias. Nos anos 20, enquanto as pessoas com variação de gênero discutiam os méritos de criar uma publicação, os proponentes defenderam uma maior visibilidade para combater a imagem negativa das pessoas trans entre o público em geral. Apontando para estatísticas recentes de suicídio, eles também argumentaram que tal jornal “salvaria a vida e a saúde dos solitários e desesperados”. O Terceiro Sexo permitiu que os leitores imaginassem um futuro para si próprios. Agora que foi redescoberto, O Terceiro Sexo deve ser incluído na longa e rica história da existência trans.
Revista original ao lado da reedição lançada em 2016 |