Quando eu era criança a questão do gênero era bem simples, a grosso modo se você tivesse um pênis você teria que aprender a se tornar um homem forte e provedor e se tivesse uma vagina você teria que aprender a ser uma mulher delicada e obediente. Assim todo mundo estaria pronto na vida adulta para começar uma nova família bonitinha, digna daquelas séries de TV com o homem ralando para pagar as contas enquanto a mulher cuidava da casa e dos filhos e dela mesma (bela, recatada e do lar que fala, né?). Tudo bem que não importava a sua vontade ou, mesmo, a sua personalidade, você simplesmente teria que se encaixar nessa ideologia de gênero.
No entanto, os anos se passaram. O salário do homem provedor médio sozinho já não suportava sustentar uma família direito e as mulheres tiveram que sair do lar para complementar a renda. Com isso, as mulheres foram notando que não precisavam ser obedientes para atender às vontades dos homens, até por que muitas delas foram obrigadas a "fazer a parte homem" por necessidade e sobreviveram. Já os homens parecem que estão acordando agora e notando que essa cultura também faz mal para eles (ah, e que eles também podem ser mais femininos).
Sendo assim, hoje eu sinto que as pessoas estão percebendo que não adianta forçar as crianças a se encaixarem nessas caixinhas binárias pois somos seres extremamente complexos e vivemos em sociedades mais heterogêneas do que antigamente. Então apresento aqui algumas dicas simples de convívio escritas pela Zada Kent, mãe de um garoto trans adolescente, para pais de filhos que não se encaixam perfeitamente na matriz binária e que poderão deixar a vida dessas crianças mais harmônica.
Traduzido de Zada Kent
Existem pelo menos três tipos de transição para indivíduos transgêneros – transição social, legal e médica. Cada uma delas irá influenciar diversos aspectos da vida de uma pessoa, mas todas as facetas detalhadas neste artigo exploram apenas a transição social.
(Se o seu filho já fez a transição social e está pronto para discutir a transição médica ou legal, acredito que o mais correto a se fazer é procurar profissionais que possam ajudá-lo a determinar o que é melhor para o seu filho. A jornada de cada indivíduo trans é única e pede a ajuda daqueles que são qualificados, esse é o melhor conselho que eu posso dar aos outros pais)
Independentemente da idade do seu filho, as dicas abaixo poderão fazer parte da transição social deles como um indivíduo transgênero ou não binário.
Roupas
Embora as roupas não tenham gênero, a maneira como nos vestimos pode representar como nos sentimos sobre nós mesmos e como desejamos nos expressar para os outros.
Quando meu filho se assumiu como transgênero, ele não queria mais usar as roupas femininas que predominavam o seu armário. Ele se apegou às roupas e aos sapatos masculinos, então tivemos que aprender a fazer compras no departamento masculino.
Seu filho transgênero ou não binário pode não querer usar muitas das roupas que ele vestia antes de perceber que não era cisgênero. (Cisgênero se refere à quando a identidade de gênero de uma pessoa corresponde ao seu sexo biológico).
Eles podem querer explorar o uso de itens fora do estilo de roupa que a sociedade atribui ao seu sexo biológico. Ou até mesmo eles podem se identificar como um garoto trans e ainda assim desejar usar vestidos.
É importante deixar seu filho escolher o que ele sente que melhor o representa e é mais confortável. Isso permitirá que eles saibam o quanto você os ama e os apoia, independentemente de como eles se identifiquem ou das roupas que estejam usando.
Cabelos / Penteados
Adotar um penteado que melhor reafirme a identidade de gênero de uma pessoa pode ser muito importante para muitos indivíduos trans e não binários, bem como para inúmeras pessoas cis-hétero.
Permitir que meu filho cortasse seus longos cachos loiros e trocasse por um moicano de estilo punk não foi nada fácil para mim. Como mãe dele, tive uma ideia na minha cabeça de como eu esperaria ver minha criança à medida que ela crescesse. Depois que percebi que nada disso era sobre mim e inteiramente sobre ele vivendo como seu eu mais autêntico, cortar um pouco de cabelo parecia ser apenas um detalhe trivial.
Lembrem-se, mães e pais, o cabelo volta a crescer. Portanto, é uma maneira fácil para uma criança se reinventar em uma imagem que ela sente que melhor a representa, uma imagem que ela sente que expressa melhor sua verdadeira natureza. Permitir que seu filho tenha a liberdade de decidir como deseja se apresentar ao mundo será um presente pelo qual ele sempre será grato.
Nome / Apelido
Como todos sabemos, alguns nomes soam mais femininos ou masculinos do que outros. O nome de nascimento do meu filho soava muito feminino. Então ele decidiu adotar por um tempo um apelido de gênero neutro: "Z". Mais tarde, ele escolheu Zair como seu nome próprio (ou nome escolhido).
Quando ele chegou aos quinze anos, nós o ajudamos a mudar de nome legalmente. Isso foi algo que teve um impacto muito positivo em sua saúde mental, auto-estima e atitude. Não me arrependo de ajudá-lo com isso.
Deixar de lado um nome que você escolheu e deu ao seu filho durante a comemoração do nascimento pode parecer difícil, especialmente se você decidiu batizá-lo em homenagem a outro membro da família. Mas saiba que se seu filho decidir que precisa mudar de nome, não é um desprezo pessoal contra você e sua consideração no dia do nascimento.
É importante lembrar que os nomes que damos aos nossos filhos são presentes. E embora os presentes sejam sempre apreciados, sua utilidade não é garantida para durar para sempre.
Na verdade, a necessidade de mudar o nome do seu filho não tem nada a ver com você e tudo a ver com ele e com a identidade e expressão de gênero dele.
Pronomes
Semelhante ao seu nome, os pronomes estão profundamente ligados à sua identidade pessoal. Se você se identifica como uma mulher cisgênero como eu, seria estranho que alguém se referisse a você como “ele” ou “dele”. Você apreciaria, como eu, aqueles que se referem a você usando “ela” e “dela” porque isso significa que essas pessoas respeitam você e sua identidade de gênero.
Não tenho certeza por que tantas pessoas cis-hétero estremecem com a ideia de mudar os pronomes em relação aos entes queridos.
É um pouco trabalhoso de lembrar no início? Sim.
Isso significa que seu amigo transgênero está pedindo demais de você? Absolutamente não.
Você deve usar os pronomes que seu filho prefere? Sim! Se você realmente ama essa pessoa, fará um esforço porque desrespeitá-la usando pronomes não mais válidos não será uma opção para você.
Banheiros
Não apenas banheiros públicos, mas outras instalações marcadas como Homens e Mulheres, como vestiários, podem ser um lembrete decepcionante de quanto o mundo ainda vê o gênero apenas nos papéis binários tradicionais. Como sabemos que existem indivíduos que se recusam a aceitar a realidade existência de um espectro de gênero, você precisa ser diligente em seu apoio ao seu filho transgênero.
Garanto que vai ter dias em que você será o único apoio emocional dele, então é importante defender suas escolhas sobre quais banheiros e instalações eles se sentem mais confortáveis em usar.
Ser pai de uma criança transgênero ou não-binária pode apresentar alguns desafios específicos. Lembre-se de que a identidade e a expressão de gênero podem mudar à medida que seu filho cresce e aprende mais sobre si mesmo. É por isso que é tão importante que você apoie seu filho durante a exploração de sua verdadeira identidade.
Espero muito que as dicas acima te ajudem a guiar seu filho nesse período confuso de transição social com segurança e felicidade. Até que o mundo inteiro aceite a humanidade real, enfatizando a bondade e a aceitação, você precisará ser persistente em seu apoio, reconhecimento, cuidado e amor por seu filho trans.
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Observações da Samy: A questão do cabelo/penteado me chateou profundamente na minha infância. Lembro de quando eu tinha uns 5 anos (ou menos) o quanto eu ficava aborrecido por não ter a opção de deixar meus cabelos crescerem e ainda ter a obrigação de ficar com “cara de hominho”, como meu pai dizia. Guardei esse rancor até o dia em que saí da casa dos meus pais e pude passar anos sem deixar uma tesoura chegar perto dos meus cabelos.
A questão do nome eu também não entendo qual é o empecilho. Ao longo da vida conheci várias pessoas que se apresentaram exclusivamente com um apelido que, muitas vezes, não foi nem elas que escolheram. Fora que até pouco tempo atrás chamávamos o nosso presidente de "Lula" e aqui no Paraná o atual governador é conhecido como "Ratinho Júnior". Sendo assim, eu queria saber qual é a dificuldade de aceitar o nome social ou mesmo um apelido de alguém transgênero ou não-binário?
Outro ponto que ela não salientou nesse artigo e que eu acho importante é que muitas vezes as pessoas até aceitam o lado transgênero do filho, mas insistem nas caixinhas binárias e acabam forçando esteriótipos do gênero oposto na criança ao invés de se libertarem desse paradigma social. Tem outro artigo dessa mesma autora que ela comenta sobre quando o filho dela, anos apos realizar as transições, decidiu usar um vestido. Para ela foi estranho justamente por que ela esperava o comportamento exclusivo de homem nele. Uma vez que a barreira do gênero é quebrada, os limites devem ser extrapolados, desta forma o ser humaninho terá a liberdade de ser como ele é de verdade.