quarta-feira, 9 de junho de 2021

Por que tanto homem se fantasia de mulher no carnaval?

Por Ruth de Aquino

Botar peruca, maquiagem e salto alto no Carnaval serve para exorcizar a fragilidade masculina do dia-a-dia.

Eles são héteros, muito machos, mas no Carnaval soltam a franga. Essa expressão significa “desinibir-se, geralmente assumindo um lado feminino, alegre”. Não é novidade, e acontece no Brasil inteiro. Eles não se fantasiam de mulher discreta. Precisa ser vulgar e desejável. Salto alto, seios pontudos, maquiagem pesada, decotes... e rebolation. No Bloco das Piranhas ou no Bloco das Virgens, nosso vizinho circunspecto fica irreconhecível até a Quarta-Feira de Cinzas. É tão divertido assim ser mulher?

Não existem blocos de mulheres fantasiadas de homens. Se a mulher quiser se desreprimir, a última fantasia será a de homem. “Mulher já pode se vestir de homem no dia a dia, usar calça comprida, camisa social, mocassim...e ninguém põe em dúvida sua sexualidade. Já o homem...”, diz o psiquiatra Luiz Alberto Py. “Quando Gilberto Gil e Caetano Veloso apareceram de pareô, a reação foi supernegativa. Em 1956, um artista plástico, Flávio de Carvalho, fez um desfile com homem de saia no Viaduto do Chá, em São Paulo, e foi vaiadíssimo.”

Minissaia, vestido de alcinha, frente única, tomara que caia, sandália, shortinho. É tudo ótimo no calor. Mulher tem um enorme leque de variações no vestuário. Homem é mais conservador. As novidades na roupa masculina desde os anos 60 foram a bermuda, a bata e a camiseta regata. Mesmo assim... Vários lugares noturnos e restaurantes admitem mulher de sandália, mas homem não. Mulher de short sim, mas homem de bermuda não.

Mas a roupa é só o visível. A fantasia de piranha desnuda outras fantasias. “O Carnaval é um rito profano e sagrado. O homem se veste de mulher porque quer ser mais afetivo de maneira escancarada, sair beijando todos, de qualquer sexo. Homem afetivo, nos outros dias do ano, é coisa de gay”, afirma o psicoterapeuta Sócrates Nolasco. “É um contraponto. Um momento do ano em que ele não precisa afirmar sua masculinidade. Mulher pode ser afetiva, carinhosa, extrovertida, dada, e nem por isso será tachada de ‘piranha’.”

Não se duvida que uma mulher seja mulher. Ela pode até ter relações amorosas ou conjugais com outra. Continua sendo mulher, caso não imite machos. Ela pode beijar amigos e amigas, abraçar, fazer carinho publicamente. Isso não fará dela “piranha” ou lésbica ou mesmo bissexual. A mulher pode, no trabalho, assumir atitudes estereotipadas masculinas – isso não fará dela um homem. O inverso é mais complicado.

É como se esses homens que se equilibram com pernas cabeludas sobre saltos altíssimos aproveitassem o Carnaval para exorcizar sua dificuldade de mostrar afeto ou fragilidade no dia a dia. Tudo é permitido porque é fingimento. No filme Se eu fosse você, em que Tony Ramos e Gloria Pires trocam de alma e papéis, as plateias o acham muito mais engraçado que ela. Porque Tony Ramos não se comporta exatamente como a sua mulher no filme. “A compulsão por futilidades e os trejeitos exagerados lembram mais o comportamento de um gay afeminado”, diz Nolasco. Para virar homem, Gloria Pires fala grosso, não abaixa a tampa do vaso e faz embaixadinhas – ela muda bem menos.

Os homens que se fantasiam de mulher para zoar à vontade fazem do Carnaval uma catarse de seus fetiches. Claro que só saem em bando. Coisa de macho mesmo. Porque sair sozinho vestido de mulher pode dar origem a outras interpretações.

“Todos, homens e mulheres, temos um lado homossexual”, diz Py. “A sexualidade é uma limitação brutal. A percepção de que a gente pertence a um sexo significa não pertencer ao outro, o que de certa forma nos rouba uma parte da humanidade. A mulher tem uma versatilidade comportamental muito maior. O homem não pode nem fazer carinho em outro homem. O Carnaval é a transgressão inocente, o liberou geral para desfrutar seu lado feminino sem perigo.”

Simpatizo com esses bandos de homens fantasiados de mulheres fálicas em tantos blocos espalhados pelo Brasil. Por um instante, eu me lembro de Freud. O pai da psicanálise dizia que a mulher sentia inveja do pênis. Não seria o contrário?

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Recentemente eu tropecei nesse artigo da jornalista Ruth de Aquino e me acendeu uma memória. A uns 10 anos atrás (provavelmente mais), muito antes de eu ter tirado do armário o meu lado feminino ou de ter começado a escrever o blog, eu cogitei aproveitar a celebração do carnaval para poder sair com as minhas roupas femininas sem me preocupar com o julgamento alheio.

Aqui em Curitiba-PR temos o bloco dos Garibaldis e Sacis que promove o pré-carnaval e em um determinado dia costuma ter o tema Invertidos onde homens vão com roupas de mulher e mulheres vão com roupas de homem. Na teoria me parecia uma boa opção para eu poder me libertar um pouco. No entanto, como eu nunca fui muito fã de carnaval, resolvi passar antes pelo bloco para ver como era e acabei percebendo que aquilo não iria atender aos meus anseios de modo algum.

Pude notar bem o que a jornalista comentou, haviam diversos homens fazendo caricatura do que é ser mulher para poderem soltar o que estava reprimido dentro deles. De certa forma é bom ver que diversos homens podem ser assim quando a situação permite. Por outro lado, não é interessante assistir isso se você for uma pessoa transgênero ou não binária. Para mim aquilo tudo parecia mais uma gozação desrespeitosa e, no fim, eu preferi nem sair para pular carnaval.

Talvez por isso que no ano passado a Prefeitura de Belo Horizonte publicou uma cartilha com práticas não racistas no Carnaval com orientações de fantasias que deveriam ser evitadas pelos foliões – tais como: índio, blackface, cigano, vestimentas de religiões de matriz africana – e entre elas também incluía “Trans-fake” (Homem vestido de mulher). Segundo a cartilha, “além de ser machista e desrespeitoso com as mulheres”, a fantasia é “preconceituosa com as pessoas trans e apenas reforça os estereótipos de gênero”. Não está exatamente proibindo homem de usar roupas femininas (algo que eu não concordaria), mas acredito que a intenção é evitar justamente a impressão ruim que eu tive. Ao invés de fazer uma caricatura do que é ser mulher num contexto que apenas reforça estereótipos, por que não fazer uma homenagem à mulheres como Frida Kahlo, Nazaré Tedesco, Lacraia, Anitta ou Vera Verão?

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