Xamanismo é um termo genericamente usado em referência às práticas etnomédicas, mágicas, religiosas (animista, primal), e filosóficas (metafísica), envolvendo cura, transe, transmutação e contato entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, dos mortos. Tais práticas buscam estabelecer uma ligação com o sagrado e o reencontro com os ensinamentos da natureza. Pode-se dizer que não tem origem em um determinado povo ou cultura pois é fruto de um fenômeno que ocorre no início do despertar da própria consciência humana, sendo, assim, uma herança de toda a humanidade. Tanto que é possível observar práticas similares em povos nativos espalhados por todo mundo.
No texto a seguir o Phil percebe nos crossdressers uma visão diferenciada do mundo. Nós tendemos a ignorar a cultura moderna de gênero e buscamos nos ligar aos nossos próprios sentimentos e nos expressarmos numa espécie de contra cultura. Talvez isso nos aproxime da nossa natureza. Talvez isso nos obrigue a ver a sociedade de uma maneira diferente. Talvez isso possa ser balela, mas achei interessante a relação que o autor encontrou e resolvi trazer o texto para vocês!
Traduzido de Phil
Os crossdressers são pessoas de outro mundo com uma visão
especial?
Talvez não devemos ser tão facilmente descartados como... o que quer
que você esteja pensando.
O status de "homem" ou "mulher", com seus privilégios e vulnerabilidades socialmente atribuídas, costuma ser defendido ferozmente na maioria das culturas (principalmente nas ocidentais). A primeira coisa que queremos saber sobre um bebê é seu sexo anatômico, e essa continua sendo a primeira coisa que queremos saber sobre as pessoas que conhecemos.
Se uma pessoa se aproxima, queremos saber imediatamente "é homem ou mulher?". Usamos as roupas como a principal referência, depois observamos
a postura e o jeito de andar. À medida que se aproximam, avaliaremos seus outros
comportamentos em relação às expectativas geralmente mantidas para homens e
mulheres, ajustadas pelas expectativas que temos em relação à idade, classe ou
etnia. Finalmente, notamos sua expressão facial e pequenos detalhes de cuidados se tornam importantes. Cada observação é checada contra as normas de seu gênero
repetidamente para interpretação. Queremos saber – aproximadamente nesta ordem
– estamos seguros fisicamente? Esta pessoa é de potencial interesse sexual? Essa
pessoa poderia ser valiosa para nós?
Não é de se admirar que pensemos que a identidade de gênero
e, portanto, a expressão facilmente decodificada, seja tão importante. Nossa
vida depende disso!
Ou não é?
Pergunte a um crossdresser.
Tal como os xamãs, nós temos uma experiência diferente com os poderosos gênios do gênero. Não somos apanhados nas visões comuns de gênero que são grosseiramente imprecisas. Podemos perceber que a mitologia do gênero está cegando nossa sociedade para seu próprio recurso mais essencial: a verdade mais profunda de seu povo.
Pode-se dizer que os crossdressers são crianças que não
cresceram como os disseram para crescer. Da próxima vez que você observar crianças,
olhe mais de perto. Faça o seu melhor para ignorar aquela voz em sua cabeça
classificando-os como "meninos" ou "meninas", que acaba alterando sua percepção
deles. Quando você olha como um xamã iria olhar, você ficará surpreso com a
semelhança entre meninos e meninas, compartilhando um rico conjunto de
características pessoais, energias, curiosidades, verdades,
generosidades, etc.
Agora repare nos adultos. Existe um clima pesado com regras, cego por
todos os tipos de emoções e preconceitos, e tentando suprimir a energia das
crianças e restringir a expressão deles. Logo você ouvirá um comando ou uma
explicação que inclui uma norma de gênero, dizendo a eles que um determinado privilégio ou
uma restrição existe devido a anatomia da criança.
É verdade que as crianças precisam de todos os tipos de
ensino para serem capazes de navegar por conta própria pelo mundo. Mas seu travesti xamânico
local o aconselhará a ser mais cuidadoso sobre como você deve fazer isso. Vale lembrar que a diminuição e a restrição das mulheres negou efetivamente a contribuição de metade da
população por milênios. O exagero do valor social e da permissividade concedida aos meninos
promoveu e protegeu uma cultura de objetificação sexual feminina, levando pessoas a embarcar em relacionamentos emocionalmente superficiais e muitas vezes abusivos. Pior
ainda, meninos e meninas individuais crescem com lobotomias emocionais e
intelectuais com base no que lhes é dito que é o "seu" gênero.
Carreira e outras expectativas situacionais, papel social em
grupos, relacionamento sexual potencial, etc, aumentam a ligação cruzada dos
estereótipos de gênero com tudo de valor e levam à captura pela mitologia do
gênero binário.
Nossos xamãs crossdressers são guiados por uma visão que
combina os mundos mitológicos do "homem" e da "mulher". Crossdressers escolhem
roupas como os outros, para codificar sua identidade. Sua realidade é benigna.
Travestir-se é dizer a verdade, e a motivação é a necessidade humana de
integridade.
Muitas pessoas têm interesse em manter privilégios especiais
para cada um dos dois sexos, mas isso envolve restringir e punir aqueles que
desejam manter sua integridade, ignorando os limites socialmente prescritos
para homens e mulheres.
O mundo dos crossdressers é aquele em que cada um de nós
pode adotar a aparência e os papéis masculinos ou femininos conforme acharmos
apropriado. Isso permite liberdades importantes para homens e mulheres. Os
homens ainda podem ser masculinos e as mulheres femininas. Alguns homens também
serão femininos e as mulheres masculinas. O sexo biológico subjacente de uma
pessoa é normalmente detectável, então não há confusão de identidade sexual.
Qual é o problema disso?
Há momentos em que vejo que o movimento do meu vestido ou o
som dos meu salto alto excita os homens. É uma resposta condicionada, mas isso os
intriga e os irrita. Às vezes as mulheres acham minha masculinidade atraente e
ficam surpresas e satisfeitas que um vestido e saltos também funcionam como uma
moldura para mim. Talvez elas possam sentir que serei mais sensível à sua individualidade
e não as objetificarei. Talvez elas percebam a masculinidade contida nelas.
Talvez o problema seja que, se os homens podem adotar as
maneiras e a aparência das mulheres, as mulheres ficam sem um conjunto especial
de ferramentas para atrair um bom homem. Por outro lado, se as mulheres podem
parecer e agir como homens, por que os homens deveriam manter o poder que
detêm? Vejo mulheres expressando desorientação ou desaprovação com a minha
aparência, como se usar um vestido fosse uma zombaria do status de "mulher". É,
na verdade, uma admiração.
Crossdressers podem desencadear medos profundos. Estamos
sexualmente confusos ou intencionalmente desviantes, e estamos tentando
envolver outras pessoas em nosso mundo aberrante? Um espectador simpático pode
presumir que somos gays, mas não sabe disso. Alguns podem supor que
estamos exibindo uma patologia relacionada à educação deficiente e à
diferenciação de gênero. Talvez possamos ser explicados como indisciplinados,
voltando imprudentemente a questões já litigadas e perdidas na infância.
Travesti não é uma diluição do status de homens ou
mulheres, é um esclarecimento de
verdades importantes sobre mulheres e homens.
Mulheres que praticam crossdressing são comuns, atualmente. Elas detém patentes importantes na polícia e nos hospitais de todos os tipos, são soldados
militares, catadoras de lixo, operárias de construção e astronautas, ou seja,
compartilham funções completas com os homens. Agora é de conhecimento geral
que a masculinidade não se limita aos homens.
A sociedade aceitou alguma liberalização para os homens ao
permitir que os homens fossem professores, enfermeiros, secretários, vendedores
de roupas, etc. Abandonamos as ideias obviamente antiquadas sobre qual trabalho
era apropriado para cada gênero. Mas insistimos que meninos e homens não
podem se vestir como as mulheres. Por quê?
Isso vai ter que passar. Os padrões de aparência das
mulheres interferem na apreciação dos homens por sua real diversidade e
capacidade pessoal, e as mulheres querem sair disso. Um dos deveres xamânicos dos
crossdressers masculinos é desvincular o 'vestido' do 'feminino', e isso ajudará tanto mulheres quanto homens.
O controle dos homens sobre as estruturas de poder social e
econômico continua a favorecer os homens em relação às mulheres. Esse sistema
excludente só faz sentido moral se os homens forem especialmente qualificados
para o domínio cultural, por outras razões que não a brutalidade. O dever
xamânico das travestis, das quais há muitas que não se consideram mais
travesti, é demonstrar sem palavras que a masculinidade é fácil de realizar e
não requer abuso, mas esse abuso é uma tentação para qualquer pessoa com poder.
Espero que essa revelação também encontre seu caminho na educação de
crianças, então estaremos focados em como administrar nosso poder para o bem
coletivo, ao invés de como negar nosso entendimento de que o que estamos aprendendo
é um mito prejudicial.
Phil, autor do texto |