Seria ótimo se nós tivéssemos um tipo de clareza súbita na nossa mente nos trazendo a compreensão do próprio ser, mas a realidade passa longe disso. Na verdade se trata de um processo intimo de autoconhecimento que cada um vivencia de um modo diferente e que acaba tendo relação direta com a maneira como as pessoas à sua volta tratam as questões de gênero ao longo da sua vida.
No meu caso, desde criança eu sentia um desgosto cada vez que ouvia que a minha imagem exterior tinha que refletir o poder do meu aparelho reprodutor. "Um homem tem que ter cara de homem, ué". Ou então quando as minhas ações ou desejos não poderiam ser realizados por se tratar de algo considerado feminino. "Como assim você quer aprender balé? Você vai é jogar futebol, se quiser aprender uma dança então aprenda dança de salão que isso vai te ajudar a pegar mulheres". Ah sim, também quando tudo se resumia a fazer algo ou não simplesmente para poder "pegar mulher".
Essas pequenas questões ao longo da vida nos faz questionar se realmente queremos ser isso que estão nos empurrando para ser com base no nosso aparelho genital. Pra piorar, a sociedade ainda martela na nossa cabeça que cada impulso e cada prazer da nossa existência é errado e vai contra a natureza. Essa experiência pode acabar fazendo você odiar viver na sua própria pele, pois sempre vai haver uma fricção dolorosa entre quem você é e quem você finge ser.
O texto a seguir, do Jay M, apresenta com detalhes alguns desses momentos que ele vivenciou e que o fez questionar sobre quem ele realmente é.
Traduzido de Jay M
Muitas vezes me perguntam: "Quando você percebeu que era transgênero?" ou alguma variação dessa pergunta. Enquanto algumas pessoas trans talvez possam se lembrar do momento exato em que isso aconteceu com elas, o mesmo não aconteceu comigo. Eu tive uma série de momentos do tipo "ah-ha" ao longo da minha vida que eu chamo de minhas memórias perdidas de menino. Essas memórias são breves momentos que me fizeram perceber que eu era diferente, mas de uma forma que eu ainda não conseguia colocar em palavras. Olhando para trás agora, fica claro que esses foram os momentos em que o garotinho perdido aqui dentro estava tentando encontrar o caminho de fora. A seguir, compartilho três dessas memórias que compõem os diversos capítulos da minha jornada para me tornar um homem trans e viver como meu eu mais autêntico.
Memória perdida de menino #1
Eu tinha cinco anos de idade e caminhava com meu pai ao longo da costa da Califórnia quando parei, olhei para ele e exclamei: "Eu quero ser um menino." Meu pai respondeu sem hesitação: “Ok. Por que você quer ser um menino?” Expliquei: “Quero jogar basquete com os outros meninos e me casar com uma esposa quando eu crescer”. Mais uma vez, sem hesitar, meu pai respondeu com calma e naturalidade: “Você pode jogar basquete, ter uma esposa E ser uma menina”. E com isso continuamos caminhando. Naquele momento, essa resposta conseguiu resolver meu conflito interno. Este foi um dos vários momentos ao longo dos últimos 25 anos em que meu menino perdido tentou encontrar o caminho para fora do meu corpo feminino.
Memória perdida de menino #2
Visitávamos meus avós paternos duas vezes por ano; uma vez durante as férias e uma vez durante o verão. Ambas as visitas inspiravam passeios para compra de roupas com a vovó, o que, consequentemente, gerava tensão entre mim e minha querida vozinha. Minha vó realmente gostaria que eu usasse roupas bonitas e, como eu era sua única neta, isso significava vestidos cor de rosa com babados e rendados. No entanto, eu realmente queria usar jeans largos, camisetas do Batman e tênis. Meu pai acabava fazendo o papel de mediador, evitando que explodisse uma guerra numa loja de departamentos. Ele mostrava para mim e para minha vó roupas andróginas com os quais ambos poderíamos concordar.
Meu irmão (à esquerda) e eu (à direita) exibindo orgulhosamente nossas novas roupas. |
Teve um ano em particular de que me lembro. Eu tinha 10 anos e aconteceu o temido passeio de compras. Eu encontrei essa calça xadrez que tinha suspensórios presos a ela que eu “TINHA QUE TER!” Eu desfilei com orgulho para cima e para baixo no provador, tentando convencer minha vó sobre ela. Ela concordou e até me deixou comprar uma jaqueta de couro para acompanhar. Quando meu irmão e eu voltamos para sua casa, eu rapidamente coloquei a roupa nova para que eu pudesse desfilar para o vovô. Lembro de me sentir tão confiante com minhas calças e suspensórios, que eu me sentia bem e sabia que eu parecia bem.
Memória perdida de menino #3
Em um verão, quando eu tinha 13 anos e estava visitando meu pai na Califórnia, decidimos comprar uma roupa de neoprene para mim, para que eu pudesse praticar bodyboard no mar sem congelar ou ficar azul. A única roupa de mergulho que cabia em mim e que estava em nossa faixa de preço era uma vermelha e preta para meninos. Lembro do meu pai perguntando com preocupação: "Tem certeza de que você aceita uma roupa de mergulho de menino?" E eu lembro de estar em êxtase justamente por ter uma roupa de mergulho de menino.
Mais tarde naquele fim de semana, fomos à praia e eu aproveitei para praticar bodyboard e alegrar o meu coração. Meu cabelo estava curto e a roupa de neoprene escondeu todas as pequenas curvas que estavam começando a aparecer no meu corpo. Eu tinha acabado de pegar uma onda e estava prestes a sair quando uma garota se aproximou de mim. Ela enrolou o cabelo com o dedo e em um tom sedutor perguntou "O bodyboard é difícil?" Eu sorri e disse “Não. É muito fácil, a menos que você pegue uma onda difícil.” (Eu não queria que ela pensasse que não era necessária nenhuma habilidade.) Ela me perguntou se eu poderia mostrar para ela como funciona. E eu disse que sim. Eu tinha percebido desde o início da abordagem que ela estava flertando comigo e que ela pensou que eu era um menino. Também percebi que eu gostava disso e que eu queria que ela continuasse a me ver como um menino. Foi então que minha sorte acabou, meu pai gritou da costa “JENNY! É hora de ir!" E sem pensar eu automaticamente respondi e então olhei para a garota em pânico, orando comigo mesmo: "Por favor, espero que ela tenha ouvido Jimmy, oh por favor, oh, por favor, que o vento tenha distorcido o som e ela tenha ouvido Jimmy ou Jennings ou qualquer outra coisa menos Jenny.” Só que ela definitivamente tinha ouvido Jenny e logo ligou os pontos e percebeu que eu não era o garoto que ela pensava que eu fosse. E com isso ela correu o mais rápido do que eu pensava que fosse possível.
Peguei minha prancha e voltei para a praia, onde estava minha toalha. Eu não sabia o porquê ainda, mas estava realmente envergonhado porque meu disfarce de menino havia sido descoberto. Mais tarde, eu percebi que essa era mais uma vez em que o garotinho perdido dentro de mim estava tentando encontrar uma saída.
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Houveram mais momentos como este que somaram uma coleção de memórias em que eu me senti diferente de como o mundo estava me vendo. Mais tarde, eu encontrei as palavras certas para descrever a razão por trás de todos esses momentos em que me senti diferente. Eu me apresentaria como transgênero para a família e amigos, com reações mistas. Na maioria das vezes, em algum momento, eles acabavam perguntando "Quando você percebeu?" E eu respondia: “Acho que eu sempre soube, só precisava de tempo para encontrar as palavras certas para conseguir explicar”.
Jay M, autor do texto |