O texto a seguir é do James Finn, um homem homossexual, relatando sobre a experiencia que ele teve com o amigo travesti David (ou Carla) durante os anos 90. Lembro bem que naquela época ninguém falava sobre vivências trans ou algo do gênero, então achei interessante a maneira como ele descreve sobre a amiga travesti e sobre o passeio en femme que ele fez durante um Halloween naquela época.
Alaska vestida de Mae West no programa RuPaul’s Drag Race |
Traduzido de James Finn
Minha amiga Carla era uma travesti dominadora profissional de 70 anos.
Ela se autodenominava como sendo travesti.
Ele era David durante o dia, um contador aposentado e bem-educado de Connecticut que preferia as roupas discretas da Brooks Brothers (antiga fabricante americana de roupas masculinas), as
belas-artes e as visitas aos netos.
À noite, ela era feroz usando meia arrastão preta, roupas de couro e salto agulha
de 15 centímetros. Ela tinha uma clientela dedicada, então suponho que ela era muito boa no que fazia.
Sentei-me silenciosamente no jardim do Centro Comunitário LGBTQ
de Manhattan ao lado do David por muitas tardes. Ele compartilhou um bom pedaço da história dele comigo. Como ele sempre se sentiu atraído por se travestir, como
se envergonhou disso em sua infância depois de ser descoberto. E, sobretudo, como ele desistiu disso para poder criar a sua família, o que era mais importante
para ele.
Quando se aposentou, ele se mudou para Manhattan e viveu a
vida que sempre sonhou. David ficou muito feliz quando me conheceu. Ele me disse
que estava mais contente do que nunca.
David não era transgênero
Ele não se sentia como uma mulher. Ele não era uma mulher. No entanto, ele tinha um enorme prazer e satisfação ao se transformar em Carla. Particularmente eu não pretendo tentar entender isso. Tudo o que sei é que David era um
bom homem e um bom amigo.
Não é tudo o que eu preciso saber?
Uma vez ele me ajudou a entender
Ele transformou uma versão muito mais jovem de mim na voluptuosa atriz Mae West com um chicote na mão. Imagine o Halloween, em meados da década de 1990, em Greenwich Village. Senhor, podíamos fazer O Halloween.
Acho que foi a Carla quem me convenceu. Ou pode ter sido
originalmente ideia do meu marido Lenny.
Seja lá quem tenha pensado nisso primeiro, o que importa é que eu passei todo o
dia de Halloween com a Carla (como David) me vestindo, maquiando, assistindo a
filmes de Mae West e aprendendo a andar de salto agulha.
Hoje, eu que sou um ex-oficial militar com atuação tradicionalmente muito masculina, prefiro meu cabelo curto no estilo militar e sou meio grosso.
Naquela noite eu usei uma incrível peruca loira. Eu balancei os meus quadris. Eu exagerei a feminilidade em uma caricatura.
Carla ficou encantada por mim
Ela era minha amiga há muito tempo e eu a conhecia bem o
suficiente para saber que ela tinha a necessidade de se travestir. Isso era extremamente
importante para ela.
Os pronomes me atrapalhavam um pouco. Sempre pensei em Carla
como ela. Sempre pensei em David como ele. A mesma pessoa. Duas identidades de
gênero.
No entanto, ela era um homem, não uma mulher.
Em todo caso, eu não precisava entender nada disso. Eu só queria me
divertir no Halloween. Eu queria usar um vestido vermelho justo com
lantejoulas e ter uma farra percorrendo todos os meus lugares
habituais.
E eu fiz. Com o maldito chicote da Carla nas mãos.
De maneira geral eu consegui o que eu queria. Lenny se vestiu
como o ator Cary Grant usando um terno brilhante que ele pegou emprestado de uma companhia
de teatro. Caminhamos de braços dados pela Bleecker Street e pela Christopher
Street, parando em todos os bares gays. Nossos amigos normalmente nem nos
reconheciam de início.
Cary Grant e Mae West em Uma Loira Para Três (She Done Him Wrong, 1932) |
Então isso foi divertido.
Bebemos, cantamos, dançamos – ou cambaleamos no meu caso.
Mas conforme a noite avançava e as pessoas ficavam mais
bêbadas, os suburbanos inundavam a Vila para ver o show, então as ruas ficaram
lotadas...
E as coisas ficaram um pouco feias
Como homem, nunca me acostumei a ter meu espaço físico violado. Eu não tolero isso. Porém, não sei dizer quantas vezes a minha bunda foi beliscada naquela noite ou o meu enchimento de peito foi apalpado. Eu não saberia te dizer quantos caras se sentiram à vontade para me abusar ou apenas para tomar liberdade com o quão perto eles chegaram de mim.
Eu usei o chicote da Carla uma vez. Só uma vez.
Não me entenda mal. Tivemos uma ótimo noite. Ficamos fora
até quase quatro horas da manhã.
Mas aprendi muito mais naquela noite do que apenas como
festejar. Aprendi que as pessoas que mexem com papéis de gênero acabam sendo vistas como sexualmente suspeitas. E eu experimentei pessoalmente que isso pode levar
a um desrespeito sombrio e até mesmo a um confronto físico.
Isso me intriga.
Não sei por que usar uma fantasia fabulosa de Halloween leva às pessoas a acreditar que sou inferior o suficiente para ser visto como uma presa.
Não sei por que um crossdresser deveria ser um alvo fácil para
um valentão.
E eu nem consigo imaginar as besteiras que as pessoas transgênero suportam diariamente.
Suponho que seja meio que como ser um bode expiatório.
Suponho que é tudo sobre ser o outro.
Existe um pedaço escuro na natureza humana, um lugar
instintivo que ecoa na névoa de nossas origens antigas como um bandos de primatas
errantes.
Proteja nosso território. Cuidado com os estranhos. Mate o
outro.
Esses impulsos são queimados de forma indelével em nossos
circuitos neurais, embora a cultura os amorteça e subjuga enquanto nos
esforçamos para transcender nossas origens e nossa biologia.
Eles ainda se manifestam, no entanto
- Racismo
- Homofobia
- Transfobia
- Misoginia / Sexismo
- Xenofobia
Aprendi um pouco sobre tudo isso na noite em que saí pela cidade vestido como Mae West.
Algo que eu nunca me esquecerei.
James Finn, autor do texto |