Sempre achei incrível o poder das roupas. Seja aquele casaco de couro que deixa a pessoa com uma atitude confiante. Ou aquele vestido lindo e brilhante que atrai toda atenção para quem o está trajando e a faz sentir a pessoa mais poderosa do local. Ou aquele terno feito sob medida que sutilmente mostra o quanto a pessoa pode pagar pela exclusividade. Ou até aquele look básico que falaram que não era para o seu gênero, mas que faz você se sentir bem consigo mesmo de uma maneira inexplicável.
Entendo que as roupas ajudam você a expressar quem é você mesmo, desta forma, ter plena liberdade de poder escolher o tecido ou corte de roupa que te agrade deveria ser muito mais importante do que essas limitações sociais que envolvem o formato do seu corpo, principalmente o seu aparelho genital. O texto a seguir fala sobre quando caiu a ficha da Grace Van Der Velden, uma mulher cis, a respeito dessas possibilidades que as roupas trazem.
Traduzido de Grace Van Der Velden
O que colocar lingerie em um homem pela primeira vez me ensinou sobre mim mesma.
Recentemente, coloquei lingerie em um homem pela primeira vez. Era um body de renda cor creme coberto de babados nos ombros e um decote em V profundo que revelava perfeitamente seu peito peludo. Era a minha peça de roupa mais feminina, mas só me fez sentir do jeito que pensei que sentiria quando a vi nele.
Através da exploração pessoal, em privado, com um parceiro, encontrei um tipo de liberdade, alegria e êxtase que eu nem sabia que era possível.
Quando vi meu parceiro vestindo a minha lingerie... algo dentro de mim mudou, se soltou e um novo sentimento começou a surgir. Isso liberou uma onda de curiosidade e poder que eu nunca tinha experimentado antes, mas que estava fluindo e se acumulando em minha mente por um longo tempo.
No passado, eu me sentia impedida de explorar expressões de gênero e emoções por meio de minhas escolhas de estilo. O que coloquei no meu corpo sempre pareceu como uma performance com significado para todos, exceto para mim. Minha roupa era uma maneira de tentar agradar as outras pessoas, e me colocava em segundo plano.
Mas agora, quero que minhas roupas sejam um indicador físico de tudo que flui através de mim – meus pensamentos, emoções, masculinidade, feminilidade e curiosidade.
Estou aprendendo a seguir esses sentimentos – a lançar uma luz em cada canto e recanto da minha imaginação e criatividade, em vez de deixá-los serem encobertos pelas teias da expectativa da sociedade. Estou aprendendo a fazer uma pergunta e ver quais respostas eu encontro dentro de mim primeiro, ao invés de buscar validação externa. Eu quero buscar experiências de nicho, uma reação emocional, um momento de euforia corporal que eu nunca havia considerado antes – aqueles que estão presos no contexto das roupas e o que significa ser a pessoa dentro delas.
Pela primeira vez, estou permitindo que as roupas se tornem uma jornada profundamente pessoal.
Eu me considero uma amante de brechós casual (sim, paradoxal... mas eu não planejo essa merda! Oportunidades incríveis sempre caem do céu – quando você mais precisa, mas menos espera). Além do meu crescente guarda-roupa de segunda mão, sou uma costureira de longa data e uma fabricante de roupas amadora. Essas são as ferramentas que uso para explorar um estilo pessoal que não tem limites. Dependendo do meu humor, faço malha com cores ou fibras diferentes, e posso ver imediatamente como fica no meu corpo. Mais importante ainda, posso monitorar a resposta emocional exata de como esse tecido, forma, cor ou textura é sentida. Posso me perguntar o que isso diz sobre mim e o que diz ao mundo sobre mim.
Até recentemente, eu não pensava em minhas escolhas de estilo como uma espécie de quadro de mensagens pessoal. Mas agora eu quero que as minhas roupas contem uma história.
Quero usar roupas que provoquem perguntas, que estimulem a curiosidade e que envolvam conforto físico e emocional. Da mesma forma que eu não me espremeria em jeans que não cabem no meu corpo maravilhoso, não posso mais me forçar a usar uma blusa esvoaçante ou um vestido justo que não reflita como me vejo – como alguém que incorpora a masculinidade e feminilidade de maneiras completamente únicas.
Existem tantos aspectos das roupas tradicionalmente "femininas" com os quais simplesmente não consigo me relacionar, e se o faço, geralmente adiciono algo que as afasta e quebre. Quando eu era criança, costumava brincar de me vestir por horas. Eu usava todos os tipos de roupas de segunda mão dos anos 50, 60, 70 e 80. Essas peças eram todas histórias vivas para mim e me permitiram explorar personagens e histórias sem limites.
Neste mundo infantil de brincadeiras e caprichos, eu não tinha gênero.
Eu estava interpretando um personagem, mas também era autenticamente eu mesma. Eu poderia ser um jornaleiro com um boné, gritando “EXTRA EXTRA” para minha irmãzinha, enquanto também usava salto alto e um colar de pérolas para servir chá às minhas bonecas.
As regras não se aplicavam. Eu usava o que parecia certo. O que aquelas roupas significavam para mim fluía livremente da minha mente não corrompida. Eu não precisava pensar em como seria percebida pelos outros, e os sentimentos dentro de mim existiam sem rótulos ou expectativas.
Mas em algum lugar ao longo do caminho, me disseram que isso estava errado. Disseram-me para eu me sentir desconfortável em meu próprio corpo e questionar tudo o que eu achasse certo. Disseram-me para considerar os outros antes de considerar à mim mesma. Disseram-me para me apresentar de uma forma que fosse palatável ou digerível para os outros.
Como adolescente, eu me sentia desconfortável vestindo qualquer coisa além de jeans e uma camiseta simples. Eu era uma atleta que se recusava a usar calças de moletom e camisetas largas, por medo de parecer "muito masculino". Ao mesmo tempo eu já passava a maior parte do tempo jogando rúgbi ou arremessando garotas no tatame. E, no entanto, eu também estava tão desconfortável com minha feminilidade que me recusava a usar vestidos ou uma blusa colorida, a não ser que fosse para ir em uma igreja ou em um casamento de família.
Percorri um longo caminho desde que era aquela jovem insegura de 16 anos. Graças a Deus. Mas eu sei que resquícios desse desconforto, dessas expectativas e medos, ainda se apegam a mim como poliéster barato.
Sou forçada a me perguntar o que é feminino e o que é masculino para mim?
Não acredito que as respostas a essas perguntas sejam universais. Minha compreensão pessoal de cada um é alimentada pelas minhas próprias experiências e pelos modelos que eu tenho em minha vida.
Por exemplo, sempre achei que jogar rúgbi fosse uma experiência profundamente feminina. Uma sensação de apoio através do esforço físico e das emoções que surgem durante o jogo sempre me ajudaram a me conectar com o meu corpo e com a própria feminilidade dele. No mínimo, ficar coberta de hematomas depois de um jogo me encorajaria mais a usar um vestido. Foi por meio desse contraste que me senti completamente sustentada e representada pelas minhas roupas.
Por outro lado, vejo a masculinidade como algo que implica franqueza e confiança nas minhas escolhas. Eu celebro a feminilidade que me incentiva a pedir ajuda aos outros e buscar a comunidade, mas o meu lado masculino toma decisões por conta própria.
Ela não é uma líder ou uma seguidora, mas uma loba solitária. Nas roupas, isso se reflete em grandes camisas de botão, jeans de cintura alta e botas que são boas para pisar forte. Minhas silhuetas masculinas mostram a pele do meu pescoço, e são quadradas e sólidas. Meu cabelo está puxado para trás para que eu possa ver claramente o que está na minha frente.
Na minha masculinidade, não procuro mistério. Essa é uma qualidade feminina para mim. Na minha feminilidade, não procuro talento. Essa é uma qualidade masculina para mim. Minha roupa começa a construir uma história de quem eu sou, além de um binário tradicional.
Agora, ao abraçar minha feminilidade, posso fazer minhas próprias roupas e mudar as velhas para revelar algo novo sobre mim. Eu posso usar lingerie, e eu posso colocar lingerie em outra pessoa. Estou explorando isso de uma maneira que eu havia esquecido. Não estou (principalmente...) preocupada com as opiniões dos outros, porque o que mais importa é a minha própria reação instintiva.
Quero usar coisas que me façam flertar comigo mesma no espelho.
E eu quero colocar roupas em outras pessoas que as façam se sentir profundamente apaixonadas por si mesmas também. As roupas podem me fazer sentir tímida, modesta, alusiva, impetuosa, triste, mesquinha, assertiva e muitas outras coisas. As roupas ajudam a refletir a expansividade dentro de mim e das pessoas ao meu redor.
As roupas podem enfraquecer um homem com a sedução, porque ele nunca sentiu como um macacão de renda pode ser confortável e sexy em sua própria pele. Isso pode fazer com que ele queira me chamar de daddy. A experiência dele usando a minha lingerie afirmou a minha própria masculinidade e o poder que me conecta profundamente dentro de mim.
A maneira como me senti quando vi um homem de lingerie também se sustenta nas botas de cowboy vintage de pele de píton que me fazem andar ereta e ter vontade de foder tudo. Eu consigo carregar essas mensagens, sentimentos e emoções dentro do meu corpo, tal como sobre o meu corpo.
Quero tirar essa curiosidade do quarto, do porão, e colocá-la à mostra para que todos vejam.
Estou finalmente pronta para foder com o binário através da minha curiosidade e das roupas. E ninguém pode me dizer merda nenhuma sobre isso.
Grace Van Der Velden, autora do texto |