Está aí uma expressão que eu considero de extremo mal gosto: "homem de verdade". Cansei de ver moças buscando esse tal homem de verdade e acabar com um cara que não levanta um dedo para faxinar a casa, ou com um cara que não dá a mínima para fidelidade, ou até com um covarde que abusa da violência física contra ela. Fora as que acabam com um filho para criar sozinhas. Enfim, isso é consequência dessa nossa cultura machista, tanto que ainda tem quem defenda cada um desses comportamentos.
Confesso que comecei a ler esse artigo da Carlyn Beccia com isso em mente, mas logo percebi que a abordagem dela foi muito mais sofisticada do que eu esperava. Ela deixa claro que masculinidade é um conceito social que muda com o tempo, mas que os caminhos que toma nem sempre são positivos. Espero que esse texto te ajude a refletir um pouco assim como fez comigo.
Traduzido de Heart Affairs
Eu sou uma mulher que procura um homem forte. Mas tem dias em que eu não sei mais exatamente o que isso significa. Eu não sou a única que está confusa. Nunca estivemos em um momento na história em que a masculinidade estivesse tão obscura.
Homens de verdade já foram os chefes de família responsáveis pelo ganha-pão. Mas antes da Revolução Industrial, o conceito de "ganha-pão" nem existia. Produtos como pão e outros itens essenciais surgiram de uma divisão de trabalho compartilhada entre homens e mulheres que trabalhavam na agricultura. Então, as fábricas transferiram o trabalho agrícola para o trabalho da cidade e as mulheres foram relegadas para a cozinha. Não trabalhávamos mais lado a lado e, quando o fazíamos, não recebíamos o mesmo salário.
Na era vitoriana da masculinidade, os homens de verdade eram cavalheiros. Ele galantemente caminhou ao lado esquerdo de sua senhorita para protegê-la das carruagens que passavam e seguiu os estritos rituais de namoro da época. E se seus princípios fossem questionados, ele se dirigia ao campo de duelo. Homens de verdade eram homens honrados.
Essa honra se espalhou pela Primeira Guerra Mundial e pela Segunda Guerra Mundial. Nossos meninos se tornaram soldados e as mulheres tiveram que preencher os espaços que os homens deixaram para trás. Assim, as portas da fábrica se abriram para as mulheres, e Rosie, a Rebitadeira, flexionou os bíceps para provar que as mulheres podiam lidar com o trabalho pesado dos homens.
Mas quando as mulheres passaram para as esferas dos homens, elas puderam disputar pelos direitos dos homens. Estávamos fazendo exatamente o mesmo trabalho sem ter as mesmas liberdades. A décima nona emenda era inevitável e os homens foram forçados a abrir espaço para as mulheres. (Aqui ela se refere à 19ª emenda da Constituição dos EUA que garantiu à todas as mulheres o direito ao voto, ela foi ratificada em 18 de agosto de 1920)
A reação também foi inevitável.
A resposta da década de 1950 às mudanças nas normas de gênero foi a criação do homem da Marlboro: fumante compulsivo e com a pele queimada pelo sol. Ele bebia seu café puro, cavalgava bastante e fumava seus cigarros com filtro. “Onde há um homem ... há um Marlboro”, dizia o slogan.
Antes do homem da Marlboro entrar na cultura popular, os cigarros com filtro eram fumados apenas por mulheres. Ou seja, toda aquela campanha hiper-masculinizada tinha um propósito: fazer os homens fumarem cigarros com filtro efeminados.
"Cigarro vai te matar, e eu sou a prova viva disso" Wayne McLaren, o homem da Marlboro, faleceu aos 51 anos com câncer de pulmão |
E funcionou. Nós pegamos um produto tóxico (cigarros) e o estigmatizamos com masculinidade. Infelizmente, naquele casamento entre a nicotina e a masculinidade, os homens sofreram muito com o divórcio. Assim que percebemos que a nicotina estava matando nossos vaqueiros, já era tarde demais. Homens de verdade morreram de câncer de pulmão. Atualmente, a taxa de câncer de pulmão em homens ainda é maior do que nas mulheres. Obrigada, Philip Morris.
O homem da Marlboro também prejudicou os homens de outras maneiras – homens de verdade não se importavam com a sua saúde. O autocuidado tornou-se feminino. Há uma razão pela qual os homens casados normalmente ainda vivem mais do que os solteiros: os homens casados têm uma parceira que se preocupa com a saúde deles, apesar dela ouvir repetidamente que autocuidado não é coisa de homem.
Na década de 1960, a segunda onda do feminismo inaugurou os direitos reprodutivos – a chave que destrancou a porta para a autonomia feminina. Quando as mulheres adquiriram poder sobre seus corpos, elas foram libertas das algemas da domesticidade. Então a mulher deixou de ser apenas mais uma maquina de fazer bebês.
Os homens responderam ao feminismo de segunda onda com a versão dos anos 1970 dos homens de verdade. O escritor Jack Nichols cunhou a “mística masculinista” para temperar a dominação masculina com experiências mais empáticas. Neste momento os homens foram ensinados que “não significa não” e que a igualdade salarial na força de trabalho beneficiaria a todos.
Já os anos do presidente americano Ronald Reagan (1981-1989) contornaram esse novo homem empático. Outro homem de verdade daquela época foi o Clint Eastwood, com uma pitada suave de Hollywood. Homens de verdade não reclamavam. Eles seduziam.
Iron John, por Pierre Droal |
Na década de 1990, Robert Bly publicou o livro João de Ferro: Um Livro Sobre Homens (Iron John: A Book About Men) e encorajou os homens a irem para a floresta para se reconectarem com sua masculinidade. Bly escreveu: "...as mulheres começaram a desejar homens molengas. Parecia até um bom arranjo no começo, mas já vivemos por tempo suficiente para ver que isso não está funcionando". Então os filmes do Rambo se tornaram muito populares nos anos 90. E, como resultado, os homens lutaram para recuperar a definição de masculinidade que havia sido mastigada pela mídia.
A ciência também deu as caras no começo dos anos 2000. Ou, mais precisamente, a pseudociência. Quer saber qual foi o livro que feriu mais o feminismo do que qualquer outro? Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus (John Gray, 1992). Esse livro afirma que existem diferenças biológicas entre os cérebros feminino e masculino.
Há apenas um problema – pesquisas recentes descobriram que nada disso é verdade. Os neurocientistas agora sabem que a única diferença entre o cérebro de um menino e o de uma menina é o volume do cérebro. Entretanto, o livro Marte vs. Vênus deu uma piscadela direcionada para o machismo. Garotos serão garotos. É apenas a maneira como seus cérebros funcionam. Boa sorte para arrancar esse neurossexismo do mercado.
Hoje sabemos que os cérebros dos homens e das mulheres não são diferentes. Devido à neuroplasticidade, o nosso ambiente muda a nossa massa cinzenta. É o velho debate entre criação e natureza que resulta em diferenças de gênero amplificadas.
Por exemplo, na média, os homens têm inteligência espacial mais forte do que as mulheres. Ou, na média, as mulheres são melhores em ler emoções. O que nunca é discutido nessas generalizações é como nossos cérebros chegaram lá. Os brinquedos e brincadeiras de meninos são voltados para a consciência espacial – blocos, legos, jogos. Os brinquedos das meninas são voltados para as emoções – bonecas, animais e artesanato. E nem me fale sobre como os pais criam meninos e meninas de maneira diferente. Eu mesma também me pego estereotipando meus filhos.
Como usamos nosso cérebro é quem nos tornamos. O que os homens se tornarão nos próximos anos?
Homens de verdade hoje
Hoje, a definição de masculinidade continua a despertar debate. Dizemos aos meninos para "se tornarem homens" e "agirem como um homem". Mas quando usamos esses comandos, não estamos dizendo a um menino para ser um homem. Estamos dizendo a eles para serem um determinado tipo de homem – aquele que não chora, aquele não reclama nem demonstra emoções.
Quando foi a última vez que você ouviu alguém dizer a uma menina para ela "ser como uma mulher" quando ela se emocionou?
Não é de admirar que alguns meninos nunca se tornem homens. Como você pode se sentir como um homem se nunca lhe disseram como se deve agir para ser um homem?
A resposta está na virtude, humildade e bondade. Temos modelos positivos – Abraham Lincoln, Frederick Douglas e Bruce Lee são alguns dos meus favoritos. Esses homens tiveram a coragem de entrar na briga e criar uma nova definição de masculinidade.
Infelizmente, os modelos de hoje têm queimado a terra em suas crenças de soma zero. Os jovens seguem o psicólogo canadense Jordan Peterson – o avô mesquinho da meritocracia. Ele diz aos homens para “limparem o quarto” e “se sua vida não é o que deveria ser, então a culpa é sua”. Ele só esquece que alguns homens não têm nem quarto para limpar.
Enquanto isso, a autora norte-americana Brené Brown ensina aos homens que não há problema em ser vulnerável. Tenham um bom choro, meninos, e lembrem-se de que “permanecer vulneráveis é um risco que devemos correr se quisermos ter uma conexão”.
Não é à toa que os homens estão confusos e ainda mais desconectados.
Infelizmente, nem todos os homens estão a bordo do trem da empatia da Brené Brown. Você não encontrará a manosfera celebrando um macho beta. Talvez porque eles não estejam vendo seus modelos adotarem essa nova definição de masculinidade com um lado de vulnerabilidade.
Em vez disso, eles se voltam para trogloditas como o comediante norte-americano Joe Rogan. Há uma razão pela qual a comunidade incel adora o Joe. No final do dia, incels são apenas um bando de caras brancos assustados, solitários e privilegiados que se sentem marginalizados pelas mulheres. (Incel vem de celibatários involuntários em inglês, normalmente são homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e culpam tanto as mulheres quanto os homens sexualmente ativos por isso)
Peterson diria que eles foram marginalizados porque são preguiçosos e não limpam seus quartos. Mas Joe diz aos homens que a culpa é das mulheres.
Em um discurso retórico, Rogan exclamou: “Senhoras, vocês produzem pessoas. Vocês produzem todas as pessoas. E vocês ainda querem ser presidente, suas vadias gananciosas? O que mais vocês querem? Vocês querem paus maiores do que a gente? "
Não, Joe, nós não queremos paus maiores. Mas queremos menos idiotas no mundo.
O sabor da masculinidade do Joe Rogan não é o que eu pessoalmente procuro em um homem. Mas, nos últimos quatro anos, a masculinidade deu uma guinada brusca para a mediocridade. Tínhamos um líder norte-americano que transformou a masculinidade em zombar de repórteres deficientes, tacar gás em manifestantes pacíficos e incitar a violência.
Ultimamente, homens de verdade queimam suas retinas olhando para eclipses, e eles certamente não usam uma máscara para proteger seus vizinhos de um vírus letal. Homens de verdade prejudicam. ferem. perturbam.
Você se lembra de quando a Twittersfera não conseguia parar de falar sobre o Trump ter escorregando em um declive úmido? Isso teria sido igualmente repercutido se fosse o Obama quem tivesse escorregado? De jeito nenhum. O Obama era confiante o suficiente em sua masculinidade para pedir mostarda Dijon em seu hambúrguer e suportar o ataque das “notícias” da Fox que zombavam dele por sua escolha de condimento.
Aparentemente, homens de verdade não colocam mostarda em seus hambúrgueres.
Homens de verdade também não caem. Ou falham. Ou então eles são informados. Essa falta de arrogância quase anulou uma eleição americana.
"A maior fraqueza dos homens é a sua fachada de força,
e a maior força das mulheres é sua fachada de fraqueza."
Warren Farrell
O termo “masculinidade tóxica” é tóxico para o feminismo.
Usar termos como "masculinidade tóxica" não ajuda neste debate. Usamos a palavra tóxica para descrever um comportamento que prejudica outras pessoas. Mas quando você associa toxicidade à masculinidade, você só cria um rótulo. E os rótulos atacam o caráter, não o comportamento. As pessoas não mudam quando você ataca o caráter delas. Elas tendem a defender o caráter delas.
E antes que as odiadoras de homens me castiguem por ser muito mole com eles, ninguém pode me acusar de não chamar os homens para discutir novamente e novamente. Já suportei tantos abusos dos homens que eu deveria ter ódio no meu coração. Mas eu não tenho. Talvez seja porque meu pai é um exemplo verdadeiramente exemplar de masculinidade. Ou talvez seja porque os bandidos me façam apreciar ainda mais os mocinhos.
Ou talvez eu saiba que odiar os homens não fará com que os abusadores abusem menos. Certamente não vai reprimir a misoginia. Quando o ato de odiar traz mudanças positivas?
Melhor ainda, me responda isto... Por que temos um termo para o mau comportamento dos homens, mas não temos um termo para o bom comportamento? Por que não vemos “masculinidade positiva” em memes virais? Alguns homens estão lutando bem nesse combate, então por que eles não estão sendo reconhecidos com um rótulo atraente?
Talvez seja por isso que não sabemos como definir masculinidade. Nós paramos de apreciá-la.
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"É do interesse de ambos os sexos ouvir a
experiência de impotência do outro sexo." Warren Farrell
O recente best-seller Moi les hommes, je les déteste (Eu odeio os homens, em tradução livre) da Pauline Harmange é um exemplo perfeito de como polarizamos o debate. Ódio é uma palavra forte. E palavras fortes têm uma resposta igualmente forte.
Infelizmente, o oposto do amor não é o ódio. É a indiferença. E essa é exatamente a resposta que você receberá dos homens quando lhes disser que os odeia – eles vão se importar menos com o feminismo.
Ele também erra o alvo. A misoginia mais profunda não está enraizada no ódio, mas na inveja. O grupo terrorista misógino mais ameaçador – a comunidade incel – não odeia as mulheres. Eles invejam as mulheres porque elas controlam o acesso deles ao sexo.
Minha avó Ella costumava dizer: “a inveja é a mais feia das emoções”. Vovó Ella era uma senhora inteligente. Se ela estivesse viva hoje, ela exigiria ver mais debates que não levassem a uma espiral em que só se acaba discutindo qual gênero é o pior.
Em vez disso, devemos entender as experiências uns dos outros e discutir como tornar os dois gêneros melhores.
Carlyn Beccia, autora do texto |