Sei que as vezes a intenção pode até ser das melhores, mas ser abordado por um desconhecido no meio da rua sem ter dado nenhum tipo de abertura pode ser uma experiência bem desagradável. Ainda mais no nosso país onde não temos garantia de segurança em espaços públicos. Fora que alguns homens esperam por algum tipo de resposta à abordagem deles e nem sempre sabem lidar de boa quando são ignorados.
Lembro uma vez que fui passear numa feirinha de rua durante o dia e um grupo de três homens me abordaram do nada. Para mim foi uma sensação bem ruim, eu só queria passear e ver os artesanatos. Por outro lado, conheço outras crossdressers e travestis que percebem esse tipo de cantada apenas como um tipo de elogio, principalmente por elas receberem um tratamento similar ao de uma mulher cis. Talvez isso seja parte da cabeça de homem que temos, talvez seja uma oportunidade de se sentir admirada. Enfim, o texto a seguir é da Rachel Anne Williams, uma mulher trans, e ela argumenta sobre o lado positivo e negativo desse sentimento.
Traduzido de Transphilosopher
Isso não acontece com frequência, mas ontem à noite recebi uma cantada. Eu estava voltando para o meu carro em um posto de gasolina e havia um grupo de caras do lado de fora. Já no limite, um deles grita para mim "Ei, querida, como vai?". Muitos sentimentos passaram pela minha cabeça quando eu respondi "Estou bem" e tentei entrar no meu carro o mais rápido possível.
Um dos sentimentos que eu senti foi o medo. Eu estava com medo de que minha resposta "Estou bem" revelasse que sou transgênero por causa da minha voz e que aquele homem, tendo me cantado, sentisse que masculinidade dele foi ameaçada e então ele acabasse me espancando até o fim, por isso entrei no meu carro o mais rápido possível.
Outro sentimento foi de nojo. Fiquei enojada com a forma grosseira como os homens podem ser com as mulheres e senti uma pontada de injustiça em solidariedade com outras pessoas identificadas como mulheres que são cantadas ao acaso.
Mas aqui está o sentimento paradoxal: além do medo e da repulsa, também senti uma impulsionada na minha autoestima, porque ser cantada é uma indicação de que os hormônios e minha apresentação estão funcionando de tal forma que as pessoas me percebem como mulher. Esse é o meu objetivo, e é bom obter evidências positivas de que estou me aproximando desse objetivo.
Tenho visto feministas radicais falarem sobre isso como se fosse um exemplo de motivo para as mulheres trans terem privilégios masculinos e não entenderem o que é ser mulher: de acordo com elas, nós gostamos de ser cantadas. Mas isso não é verdade. A resposta é paradoxal porque contém em si elementos concorrentes de medo/repulsa e um sentimento positivo de euforia de gênero com a evidência de "passar" por seu gênero identificado. Não que eu goste de ser cantada – eu estava com medo de apanhar ou sofrer algo pior e a minha profunda intuição feminista gritava horrorizada por considerar a cantada de rua um fenômeno que afeta negativamente as mulheres. Não é tão simples quanto gostar ou não gostar. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não tive nenhum sentimento positivo por ser cantada – os sentimentos negativos se misturaram aos sentimentos positivos de euforia de gênero, por me sentir "passável" e atraente.
Eu ficaria curiosa para saber se as mulheres cis já sentiram esse sentimento paradoxal também, por exemplo: sentir que sua roupa e seu cabelo devem estar arrasando hoje porque você foi cantada, o que é incomum para você, mas também se sentir enojada com a misoginia exibida e, ao mesmo tempo, se sentir com medo. Nunca perguntei a uma mulher cis sobre isso, então não tenho certeza, mas apostaria que algumas mulheres cis de fato sentem o mesmo paradoxo.
Mas eu também apostaria que para as mulheres trans o paradoxo é sentido em maior proporção. Para muitas mulheres trans, inclusive eu, ser passável é de grande importância e, às vezes, é difícil obter evidências "objetivas" de que você está passando. Ser cantada é uma forma de evidência e, portanto, traz consigo um sentimento positivo associado à sensação de estar passando como mulher. No entanto, precisamos fazer um trabalho melhor na criação dos rapazes para que eles também sintam nojo da prática de sair mexendo aleatoriamente com as mulheres na rua e se sintam envergonhados dos outros que fazem isso.
Rachel Anne Williams, autora do texto |