quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Eu sou trans, e isso me faz uma narcisista

As vezes eu tenho a impressão de que as pessoas que não tem nenhuma ligação com movimento trans acha que tudo nesse meio se resume apenas a questão da nossa aparência externa. Como essas pessoas não entendem como é o sentimento interno de disforia, elas nos julgam apenas pelo que elas veem. Tudo bem que boa parte dessas pessoas nunca teve nenhum tipo de contato direto com pessoas trans, mas essa falta de empatia acaba tornando a questão trans muito superficial.

O texto a seguir da Stella Luna complementa a questão da autodúvida trazida no último texto e reflete sobre essa superficialidade a respeito do tema.

Traduzido de Stella Luna

“A comunidade LGBTQ não tem o direito de exigir o respeito que todos os outros recebem!”

Todas as manhãs eu acordo com um grande sorriso no rosto. Vou tirando as cobertas do meu corpo perfeito, pulo para o banheiro e bebo do meu lindo reflexo. Sou a criatura mais linda que eu já vi, quase automaticamente penso comigo mesma. Como o pequeno rio onde Narciso fica, eu poderia passar o dia todo aqui com a água correndo, apenas me admirando em vez de lavar o rosto e me arrumar.

Uma vez que estou limpa e pronta para sair, fico angustiada sobre que roupa devo usar, porque sei que não importa aonde eu vá, as pessoas estarão me cobiçando e me encarando. Eu sou alta, admirável e quero todos os olhos em mim, não importa o que eu faça.

Depois de um longo dia impressionando os transeuntes no meu desfile de moda individual, eu deslizo para a minha cadeira e clico e clico no meu teclado, escrevendo mais uma história sobre minha vida tão importante e como o mundo deveria girar ao meu redor só porque eu sou trans. 

…Sim, claro. Acho que esse é o conceito errado que as pessoas têm sobre as pessoas trans que assumem ou escrevem sobre suas experiências. Tive pessoas na vida real e online me chamando de "narcisista" por eu escrever sobre minha experiência ou por focar na transnidade em geral.

Sei que eu não preciso me justificar – porque também acho que é uma espécie de movimento narcisista – e sei que nenhum dos detratores das pessoas trans vai ler isso, mas acho que vale a pena no caso de eu ser capaz de mudar a mente de alguém.

Reinventando a roda

Em primeiro lugar, eu sei que nada do que estou fazendo é realmente revolucionário. Não estou tentando dizer que eu vivo uma vida extravagante e importante. Existem outras pessoas trans como eu que não enfrentam tanta discriminação ou eventos malucos no dia-a-dia. No entanto, o que escrevo são coisas que não acho que as pessoas cis tenham que passar, ou mesmo considerar.

Por exemplo, eu escrevi sobre usarem o gênero que não corresponde a minha identidade em casa e o que significa fazer a transição para algumas pessoas. Não sou uma profissional e não sou uma pseudo-psicóloga/socióloga presunçosa. Sou apenas uma pessoa que escreve sobre questões trans porque quero ajudar as pessoas trans que estão passando pela mesma situação, mostrando que elas não estão sozinhas, ou dar às pessoas cis um vislumbre da vida das pessoas trans para que elas possam interagir de forma mais cuidadosa com pessoas trans.

“Pare de jogar na minha cara”

É um equívoco achoar que as pessoas que vivem fora da norma de ser hétero ou cis apenas querem "jogar na cara de outras pessoas" sendo elas mesmas em voz alta. Acho que isso tem a ver com pessoas cis-heterossexuais vendo seu comportamento como a “norma”, o que faz com que o comportamento pareça quase invisível. Quando você entende, no fundo, que está alheio a esse sistema, o comportamento se torna extremamente aparente. Por exemplo, desde o nascimento, os bebês do sexo masculino são chamados de "bonitos" ou "garanhões" e os bebês do sexo feminino são chamados de "preciosas" ou "lindinhas".

Li um estudo que fez um experimento de percepção vestindo um bebê de homem e, mais tarde, de mulher. Os transeuntes referiam-se ao bebê como “forte” e “durão” quando pensavam que era do sexo masculino, enquanto se referiam ao bebê com adjetivos mais femininos quando acreditavam que era do sexo feminino. Isso não quer dizer que seja errado referir-se a um bebê como fofo ou precioso, mas ver exatamente o mesmo bebê recebendo referências completamente diferentes apenas em função da percepção de um gênero implícito deixa claro que o gênero não é algo fácil, algo inerentemente reconhecível, e é em grande parte um produto da cultura.

Para deixar isso mais claro, os estereótipos de gênero também se aplicam à atração sexual ou romântica. Bebês que brincam juntos, sendo um homem e uma mulher, costumam ser chamados de "namorado" e "namorada", o que aparentemente é considerado normal, enquanto os bebês podem nem mesmo ter uma concepção de sua própria consciência quando têm menos de 4 meses. No entanto, crianças de até 18 anos (e às vezes mais velhas) são indagadas de que não podem "saber" que são ou não heterossexuais porque não estiveram com alguém desse gênero, porque ainda não se desenvolveram totalmente ou apenas porque é “errado” ser gay.

Se os gays fizessem com seus bebês o mesmo que os heterossexuais fazem com todos os bebês, implicando que eles se sentem atraídos por qualquer bebê ou pessoa do mesmo sexo, haveria um pandemônio e toneladas de reações. Há alguns dias, vi um vídeo no TikTok de uma menina respondendo a um vídeo de um menino jogando notas de um dólar em uma stripper enquanto o pai ria ao fundo. Ela disse em sua resposta exatamente o que eu estava pensando: que era doentio e nojento. Se fosse um stripper do sexo masculino, a criança logo seria levada à custódia do Serviço Social.

Não estou tentando dizer que todas as pessoas heterossexuais fazem isso, mas é definitivamente verdade que, como sociedade, a heterossexualidade é a norma e, portanto, torna-se invisível para a pessoa média. É por isso que as pessoas LGBTQ sendo tão abertas parecem estar "jogando na cara das pessoas", mesmo que estejam apenas fazendo as mesmas coisas que os casais heterossexuais fazer.

“Você só quer atenção, não é?”

Não, eu não. Definitivamente existem pessoas que anseiam por atenção, mas isso é independente da sua sexualidade ou do gênero. Se eu quisesse atenção, por que eu me isolaria por anos, com medo de ser rejeitada ou prejudicada por minha identidade? Por que eu iria deliberar por toda a minha passagem no ensino médio e na faculdade se eu deveria ou não assumir e ser eu mesma? Por que eu estaria escrevendo isso agora com um pseudônimo e não com o meu nome verdadeiro?

Eu escrevo para deixar meus sentimentos fluírem de uma maneira controlada, para comunicar algo que eu acho que pode ajudar outras pessoas trans e para dar aos outros um vislumbre dos aspectos da experiência trans que eles podem não entender ou considerar se forem cis. Eu quero qualquer coisa, menos atenção.

Mesmo se eu quisesse atenção, não seria realmente seguro recebê-la, visto que as pessoas trans são estatisticamente mais propensas a serem discriminadas ou mesmo agredidas. É por isso que muitas pessoas trans querem apenas ser "normais" e "passar" ou "se misturar"– como muitas pessoas cis dizem que elas deveriam. Não é porque eles querem ser vistos como cis (embora possa ser o caso para alguns), mas porque é muito mais seguro ser visto como cis para evitar danos. Se eu quisesse atenção, dada a minha aparência, poderia sair e conseguir (não no bom sentido, acredite em mim).

Não sou narcisista porque discuto meus sentimentos sobre gênero online. Na verdade, dada a pequena quantidade de dinheiro que ganho com isso, é bastante óbvio que estou fazendo isso para ajudar outras pessoas (enquanto ajudo a mim mesma um pouco). Se uma pessoa cis realmente viver um dia na pele de uma pessoa trans, ela entenderia o quanto disso se trata de tentar se misturar. Barbear-se duas ou três vezes, comer, deliberadamente não buscar amizades ou romance fora dos círculos queer, não falar se alguém errar o seu gênero e usar roupas que deixem você incrivelmente desconfortável de se apresentar como o seu sexo de nascimento para estar seguro são apenas a ponta do iceberg.

Na verdade, eu diria que o narcisismo atribuído às pessoas trans apenas por serem nós mesmas é mais corretamente atribuído àqueles que dizem que estamos "errados" ou que somos "falsos". Como você pode esperar que todo mundo adira à sua visão de mundo estreita que foi formada pela exposição limitada a pessoas diferentes de você? Por que é que a “biologia básica” e seus próprios princípios devem ditar como um mundo inteiro funciona? Psicólogos, biólogos e outros especialistas validaram a existência de pessoas trans, e nossa existência não ameaça a sua. A ideia de que ameaça sua experiência é problema seu, não nosso.

“Você só quer enganar os homens”

Primeiro é que esse medo muito provavelmente vem da ideia de que você acha que as pessoas trans são, antes de tudo, apenas mulheres trans; segundo, que você acha que todos s]ao hétero; e terceiro, você provavelmente acha que eles querem transar especificamente com você. Com uma atitude transfóbica e egocêntrica como essa, tenho certeza de que as mulheres trans ficarão bem longe de você, acredite em mim. No entanto, se isso é algo que o preocupa por qualquer outro motivo, você não tem razão para acreditar que as pessoas trans estão tentando “enganar” os outros.

A maioria das pessoas trans declara que são trans em suas biografias de namoro ou em bate-papos logo depois de se conectar, porque senão, podem ser mortas no primeiro encontro. Além disso, nem todas as mulheres trans são heterossexuais. Algumas são assexuadas, algumas são bissexuais e algumas são lésbicas, assim como as mulheres cis! Algumas lésbicas também defendem o ponto de vista de que mulheres trans são homens, mas isso é, novamente, incorreto. Além disso, ninguém está forçando você a namorar pessoas trans. Você tem o direito de não namorar pessoas trans se não quiser. Você não vai ser crucificado por não namorar uma pessoa trans. Na verdade, você provavelmente enfrentaria discriminação se namorasse uma pessoa trans.

Muitas pessoas acreditam que “flocos de neve liberais” estão realizando alguma inquisição transfóbica, “expondo” as pessoas por serem transfóbicas. Mas isso está muito longe da verdade. Ainda é muito aceito que as pessoas sejam transfóbicas, seja abertamente ou silenciosamente.

Com isso em mente, por que qualquer pessoa sã tentaria “enganar” um homem para que ele a namorasse? Além disso, a ideia de que é um "truque" é errada por si só. O "truque" está obviamente implícito em que a mulher trans em questão é na verdade um homem, tornando o homem "gay". Ela não está enganando ninguém e, tecnicamente, não deve a ninguém a informação de que ela é trans. Claro, isso pode apresentar problemas mais tarde se o homem for transfóbico ou se ele quiser ter filhos ou se questioná-la sobre a falta de menstruação. No entanto, ela não o está "enganando" em nada.

Parada do Orgulho LGBT não é narcisismo

Quando todo mundo lhe diz para parar de sentar de uma certa maneira, de se vestir de uma certa maneira ou de falar de uma certa maneira quando você é criança porque se parece com o "sexo oposto" ou apenas porque é "gay", você começa a construir uma parede em torno de seu verdadeiro eu. Por que você não deveria ser aberto e orgulhoso quando finalmente tem a coragem de expressá-lo?

Pode ser difícil imaginar quando você é cis e/ou heterossexual, mas se um dia você acordasse e as pessoas começassem a se referir a você como os pronomes binários opostos e dissessem que sua sexualidade estava errada, você provavelmente iria dar risada e inicialmente pensaria que era algo estúpido. No entanto, com o tempo, você provavelmente ficaria cada vez mais frustrado a ponto de sentir a necessidade de ser você mesmo, não importa quais sejam as consequências. Por que você não deve pedir que as pessoas chamem você da coisa certa? Por que você não tem o direito de amar quem você quiser, como qualquer outra pessoa?

.  .  .  .  .

Esta é apenas a ponta do iceberg de por que as pessoas trans não são narcisistas por serem trans e/ou por escreverem sobre isso. A quantidade de discriminação social, legal e política que enfrentamos fica aparente apenas ao ler as notícias e falar diretamente com pessoas trans. Claro, existem algumas pessoas trans que realmente são narcisistas, assim como existem narcisistas cis, logo o narcisismo não é causado por ser trans.

Pedir os mesmos direitos que os outros não é vaidade. Pedir para ser tratado com o mesmo respeito que os seus colegas heterossexuais não deve ser considerado narcisista. Se você acha que sim, você poderia questionar sobre o porquê de você acreditar que nem todos deveriam ter os mesmos direitos que você, especialmente se a existência deles literalmente não ameaça a sua de forma alguma.

Se você acha que o respeito pelas pessoas Trans e cis-LGB é mutuamente exclusivo do respeito pelas pessoas heterossexuais, ou se você acha que o reconhecimento das identidades LGBTQ seria uma ameaça à sua identidade hétero/cis, o narcisista pode realmente ser você.

1 Comentário(s)
Comentário(s)

Um comentário:

Unknown disse...

Ser trans é uma jornada longa e difícil, mas enquanto todos dermos apoio e amor uns aos outros, todos chegaremos lá no final.