Bom dia a todos e feliz ano novo! Esse ano eu pretendo continuar trazendo mais textos toda quarta-feira para fazer vocês refletirem um pouco, além de dicas, fotos, HQs e qualquer assunto interessante relacionado à nossa vivência fora da norma. A começar por esse texto de um terapeuta americano trans e queer que trata da auto dúvida que temos a respeito da nossa própria identidade. Ele foca em vivências trans, mas o contexto vale igualmente para qualquer pessoa que foge da linha cis-hétero.
Traduzido de Terapeuta Trans
Como lidar com essa questão assustadora.
Eu me entendi como sendo uma pessoa transgênero quando estava com 26 anos. Comecei a fazer a terapia hormonal alguns meses depois e mudei legalmente meu nome alguns meses depois
disso. Embora eu tivesse muitas pessoas que me apoiavam, ainda foi uma das
coisas mais difíceis que eu fiz na minha vida. Eu não trocaria isso por nada e estou feliz por
ter abraçado quem eu realmente sou.
Nos primeiros anos, fui atormentado por preocupações sobre a
validade da minha identidade trans. E se eu não for realmente trans? Eu
pensava comigo mesmo. E se eu estiver errado e acabar cometendo um erro terrível? E
se eu tiver que desfazer a transição e me sentir insuportavelmente envergonhado?
A maioria das minhas preocupações se baseavam na minha ansiedade, o
que significa que estavam focadas no futuro. Essas eram coisas que ainda não
haviam acontecido e podem nem acontecer. Para mim, não aconteceu.
Embora a destransição faça parte da jornada de algumas pessoas, a
maioria das pessoas trans não passam por essa experiência. Infelizmente, as poucas pessoas que desfazem a transição acabam sendo usadas como evidência de que pessoas trans em geral não
são reais, o que não só ataca pessoas trans, mas objetifica aqueles que vêm a
perceber que não são trans (ou que prefeririam viver a vida como se forem cis,
mesmo que não sejam).
Ainda tenho essas preocupações de vez em quando, embora não sejam tão comuns. Até o momento já se passaram cerca de cinco anos e essas preocupações diminuíram à medida que relaxei em minha identidade.
Se você é trans, pode ter se perguntado a mesma coisa.
Narrativas dominantes sobre pessoas trans insistem que todos nós sabemos que
somos trans desde muito jovens, e que temos uma experiência linear e previsível
na qual nos identificamos com um gênero binário e nunca nos perdemos em termos
de exploração. Jazz Jennings é um ótimo exemplo dessa narrativa. Estou tão
feliz que a Jazz trouxe luz à sua experiência transgênero, e que ela está saudável e que o seu bem-estar foi protegido. Dito isso, é imperativo que discutamos o espectro
de experiências de gênero para ajudar as pessoas a se sentirem confiantes e
fundamentadas em suas identidades.
Se você está se perguntando sobre sua própria identidade trans, ou se sente ansioso com o questionamento, saiba que isso é muito normal. É extremamente difícil acreditar em si mesmo quando você é bombardeado com mensagens de que não existem pessoas trans ou de que somos um tipo de subumanos. Repare: as discussões sobre o uso de banheiros, o esforço para bloquear a participação de pessoas trans em esportes, a proibição temporária do ingresso de pessoas trans no exército dos EUA e a permissão de que profissionais de saúde possam recusar a tratar pacientes trans. Pode ser perigoso e assustador ser trans. Não é à toa que nos perguntamos se realmente vale a pena.
Aqui estão algumas coisas a serem consideradas se você está
lutando com essa questão, assim como eu e muitas outras pessoas trans que eu conheço também estão. Você pode notar um padrão nas perguntas. Se não, não se preocupe. Vou
revelar isso em breve.
E se eu só quiser atenção?
Esta é uma das acusações mais comuns levantadas contra as pessoas trans. Isso vai ao lado de histórias cansativas sobre como ser trans está na moda, ou que apenas queremos nos sentir especiais. É fato que as pessoas trans chamam atenção. No entanto, essa atenção é tipicamente negativa. Especialistas conservadores recentemente se tornaram ainda mais obcecados por pessoas trans. Eles zombam de pronomes, nos chamam de doentes mentais, insistem que mulheres trans são estupradoras, ignoram que homens trans também existam e têm um foco preciso na passabilidade e na narrativa de antes/depois.
Existem muitas maneiras de chamar a atenção que não só são vistas de maneira mais positiva pela sociedade, mas que também exigem muito menos esforço. O fato de que temos que nos assumir e correr o risco de perder amigos, família, emprego e moradia (dependendo de onde vivemos) diz muito sobre como uma boa atenção vale para qualquer pessoa. Se alguém estivesse apenas procurando atenção poderia fazer uma tatuagem no rosto, adotar um animal de estimação exótico ou andar com uma melancia pendurada no pescoço.
Você não quer atenção porque é egocêntrico. Você quer que as
pessoas prestem atenção em quem você é e se preocupem com você. Esse é um
desejo humano universal, e qualquer um que questione isso o faz porque se sente
desconfortável com pessoas trans. Isso é problema deles, não seu.
E se eu estiver errado e acabar cometendo um erro terrível?
Existem algumas considerações importantes ao lidar com essa
questão angustiante.
Uma é: isso é literalmente verdadeiro para qualquer decisão
que você tome na vida. Você pode estar errado sobre se casar com alguém e
presumir que ficarão juntos para sempre. Você pode se arrepender de ter feito
uma tatuagem enorme cuja remoção a laser será bem custosa. Você pode comprar uma casa
da qual acabe não gostando, pode seguir uma carreira que percebe que odeia,
pode queimar uma ponte e nunca mais ter a chance de se conectar com aquela
pessoa novamente.
Se você pensar em tomar decisões com base em coisas negativas que
podem acontecer, pode ter certeza que você nunca mais irá tomar uma decisão. Isso não é
exclusivo da transição. Felizmente, os números sugerem que é raro se arrepender
da transição e não é um caso perdido para desfazer a transição, se isso é o que
você sente que precisa fazer.
Outra é: você pode cometer um erro igualmente ruim ou pior
se não fizer a transição. Você pode vir a se arrepender de deixar a dúvida
atrapalhar o que você realmente deseja. Pode ser pior perceber que você se
impediu de ser quem você realmente é por medo, do que tentar algo e reconhecer
que não foi a escolha certa para você.
Último: Não é impossível desfazer a transição. Você pode optar por fazer a transição aos poucos, se preferir. Você pode ser seletivo com quem você fala
e em quais contextos você vai estar "fora do armário". O impacto das cirurgias e os
efeitos dos hormônios podem ser revertidos ou reduzidos, e você pode ser gentil
consigo mesmo para ver como se sente a respeito no início.
E se eu tiver que desfazer a transição e ficar
insuportavelmente envergonhado? Ou, e se eu odiar
o meu corpo mais tarde?
Como já mencionei, é improvável que isso aconteça. Se isso
acontecer, pode ser um teste para aqueles que realmente amam e honram
você. Se eles puderem ficar por perto depois de algo tão difícil, você pode
contar com eles para ajudá-lo no futuro. O maior impacto desse processo é sobre
você.
É muito trabalhoso desaprender de como os corpos “deveriam”
ser. Ter cabelo no peito sem passar por uma mastectomia sendo um homem
trans, ou deixar de colocar silicone como uma pessoa transfeminina
pode levá-lo a um território de ódio a si mesmo. Eu mesmo tive essas
preocupações. Passei a ter um relacionamento melhor com o meu corpo e conheço
muitas pessoas trans que estão em relacionamentos amorosos e têm muitos amigos,
apesar de terem um corpo que não reflete formas e texturas normativas.
Há uma boa chance de você lutar contra a disforia ou desejar
ter uma aparência diferente. Existem maneiras de lidar com isso e, honestamente,
essa disforia não desaparecera magicamente se você não fizer nenhuma mudança.
Pessoas que não são magras, brancas, cisgênero, saudáveis, heterossexuais também lutam para se sentirem bonitas, dignas e firmes em seus próprios corpos. Esta é outra forma de vivenciar isso, e com a qual não é impossível
conviver. Você pode até mesmo começar a amar seu corpo, independentemente de
como ele mude.
. . . . .
Nada disso tem o objetivo de te convencer a fazer a transição
se você estiver realmente em cima do muro. Em vez disso, tem o objetivo de
encorajar aqueles que têm motivos para acreditar que são trans, mas lutam
contra a dúvida por causa do feedback negativo.
O padrão aqui é que as dúvidas mais comuns sobre nossas
identidades refletem as mesmas declarações odiosas e ignorantes feitas sobre
pessoas trans na mídia, online, em comunidades ou em nossas famílias.
Não é por acaso que nosso processo de pensamento ao duvidar
de nossas identidades reflete o que os outros dizem. Pense nisso: se você
realmente duvidasse de quem você é, não teria seus próprios motivos para isso?
Claro, a disforia assume muitas formas e as experiências trans são complexas e
únicas. Dito isso, eu desafio você a realmente ouvir essa voz duvidosa na
próxima vez que ela vier. Pergunte a si mesmo: com quem isso parece? Há uma boa
chance de soar como algumas personalidades conservadoras, sua avó, um âncora do jornal ou alguém que
você pensou ser seu amigo. Você provavelmente está internalizando a voz de
outra pessoa.
Da próxima vez que você estiver se auto-flagelando e
duvidando de sua identidade – algo ao qual apenas VOCÊ tem acesso verdadeiro –
ouça a sua própria voz. Nosso tempo neste planeta é limitado. Mesmo que você não possa se
manifestar por motivos de segurança, mesmo que esteja com medo de que ninguém
acredite em você, você merece saber por si mesmo quem você é. Comece
reconhecendo isso para si mesmo.
Como Confúcio disse uma vez: “Quanto mais você se conhece, mais você se perdoa”.