quarta-feira, 8 de junho de 2022

Eu não entendo a Disforia de Gênero

Traduzido de Aleksandra Pawłwoska

Falo sério, como isso funciona?

A disforia de gênero é, para uma parte significativa de nós, uma questão intrínseca da experiência transgênero. É um sentimento inexplicável de tristeza, desconforto e inadequação que cerca o indivíduo. E esse sentimento fica flutuando, sendo que às vezes fica insuportável e às vezes fica imperceptível.

Mas, tipo, eu não posso ser a única pessoa que simplesmente não entende bem, certo? Parece haver tantas causas diferentes de disforia, tantas maneiras diferentes de sentir a disforia. Inclusive, há também a euforia de gênero, que seria o oposto da disforia – uma sensação de conforto, felicidade, de estar contente em seu estado de ser. E quanto mais eu penso neles, menos sinto que os compreendo.

Parece que “disforia de gênero” é, na verdade, vários fenômenos diferentes, que se alimentam um do outro. Quero explorá-los brevemente – e como eles se relacionam. Fora que, tudo isso é coisa que acabei de inventar, não há precedente oficial para nada disso, é apenas uma estrutura para mim e para outras pessoas trans, para nos entendermos melhor.

O estado de disforia

O estado geral de disforia é o que provavelmente a maioria das pessoas tem em mente quando diz “disforia de gênero”. Não é bem um sentimento, é mais um “estado de ser”, semelhante a “ter depressão” (ao invés de “estar deprimido”).

Sua principal característica parece ser, em geral, o sentimento perpétuo de sua existência estar errada. Seu corpo está errado, seu papel social está errado e todas as outras coisas relacionadas à gênero em sua vida estão erradas. Pode existir sem a devida identificação por anos e lentamente corrói a sua alma. Pode induzir depressão, ansiedade ou sintomas de despersonalização e desrealização, e um monte de outros efeitos negativos para a saúde mental.

É esse tipo de radiação negativa e passiva que ocorre na vida de uma pessoa transgênero. Enquanto seu gênero experimentado e o seu gênero desejado forem diferentes, a disforia irá corroer a sua felicidade.

O sentimento de disforia de gênero

Alguma coisa faz você se sentir disfórico? Eu, por exemplo, superei a disforia descrita acima como se fosse um tumor emocional, ela está adormecida e realmente não ocupa a minha mente ou esgota as minhas emoções como no início da minha transição. No entanto, isso pode mudar facilmente – a disforia pode ser facilmente chamada para sair do seu buraco com um único deslize da língua, uma única selfie tirada em um ângulo ruim, um único olhar desfavorável no espelho ou uma única conversa descarrilada.

E então isso te atinge. Não é apenas uma “sensação de desconforto”. É impossível descrever, na verdade – parece que alguém estava arranhando as unhas em um quadro-negro dentro do seu corpo todo, de uma vez. É esse sentimento de choque que primeiro faz você querer arrancar os olhos, que depois o retorna ao estado de disforia do qual você sentiu que escapou ou torna o existente ainda pior. Pode durar uma hora, pode durar um mês, quem sabe.

E a vida é um campo minado desses gatilhos.

Euforia de gênero

A euforia de gênero parece ser um pouco diferente. Não parece haver algum tipo de estado “hipomaníaco” que a transição induza – não parece haver (ou pelo menos nunca ouvi falar de ninguém que tenha experimentado) um “estado de euforia” duradouro ou permanente.

A sensação de euforia, no entanto, é outra coisa – honestamente, às vezes me sinto mal por pensar que pessoas cisgênero nunca conseguirão experimentá-lo (pelo menos não com tanta facilidade). É exatamente o oposto da sensação de disforia – é como se você entrasse em uma sala quente depois de passar horas no frio, enquanto, ao mesmo tempo, bebe água depois de ficar com sede por horas. Ou como se você acabasse de ser informado de que conseguiu atingir um objetivo que desejava e vinha trabalhando há anos.

E é desencadeada exatamente de maneira oposta à disforia – se fazendo algo afirmativo, geralmente por uma das primeiras vezes. Ao ver seu corpo finalmente se apresentar do jeito que você quer (graças a autocuidados, vestimentas, hormônios, cirurgias...). Por ter o gênero correto visto por seus amigos e familiares ou, melhor ainda, por estranhos. Cada marco na transição parece ser recompensado com a euforia de gênero.

A relação entre euforia e disforia

Essa é a coisa que mais me intriga. Vou falar puramente da minha própria experiência aqui, mas acho que pelo menos algumas outras pessoas trans poderão se relacionar com isso:

Euforia e disforia não são independentes uma da outra.

Depois, digamos, de ter passado o Natal com a família para qual eu não tinha saído do armário, quase desabei de felicidade quando conversei com um amigo que... simplesmente me identificou corretamente. Isso, é claro, não acontece de outra forma, quando as pessoas me identificam corretamente geralmente não respondo com nenhuma emoção.

Outro exemplo: quando depilei as minhas pernas pela primeira vez em toda a minha vida, chorei de alegria por vários minutos. Isso não é uma reação normal ao me barbear – e eu não senti o mesmo desde então.

O que essas duas experiências têm em comum é que vieram após longos períodos de disforia. Elas foram um alívio. A euforia de gênero veio como uma ausência de disforia.

Mas eu não sinto que isso dê uma sensação de justiça à euforia. Embora sim, às vezes parece ser derivado apenas do estado geral de disforia, que não era realmente perceptível, diminuindo, também pode ser desencadeado por coisas temporárias ou pela transição simplesmente avançando. Recentemente, eu me senti eufórica porque meu corpo estava mudando… mas eu não estava particularmente disfórica com isso antes. Insegura, talvez, mas não disfórica. E ainda assim se manifestou da mesma forma. Portanto, não pode ser totalmente dependente da disforia – especialmente porque há pessoas que experimentam isso em vários graus diferentes. Algumas pessoas nem sequer experimentam disforia e, vice-versa, outras nunca sentem euforia.

No geral, é por isso que digo que não entendo a disforia. Enquanto na superfície suas causas e efeitos parecem ser claras, um pouco mais abaixo está uma tonelada de outros fatores e combinações sobrepostos que parecem moldá-la. Eu realmente não me adentrei em outros pontos aqui – como a relação entre disforia e dismorfia corporal, que parece atormentar uma tonelada de pessoas trans também, ou como a disforia pode ser realmente estranha às vezes e causada por estereótipos sociais que consideramos verdadeiros. Mas falarei sobre essas duas coisas em outro texto.

Aleksandra Pawłwoska, autora do texto
1 Comentário(s)
Comentário(s)

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interesante. Parabens pelo texto.