Traduzido de TaraElla
Vamos falar sobre os 1% contra os 99% da população trans
Uma das coisas mais importantes que busco é fazer as perguntas difíceis a respeito de para onde estamos indo, como comunidade. Nos meus artigos eu já falei sobre diferentes tipos de visibilidade e sua capacidade de gerar aceitação ou reação. Desta vez, explorarei uma questão relacionada às prioridades do establishment dos ativistas trans e para onde elas estão nos levando, como comunidade.
Eu sei que muitas pessoas transgênero estão frustradas com o direcionamento que as vozes mais altas dos ativistas estão levando a nossa comunidade e as nossas prioridades neste momento. Em uma fase em que muitos membros de nossa comunidade ainda estão lutando com o básico da vida, quando muitos de nós ainda vivemos com medo do ressentimento e da reação ao atual ativismo trans e em quais efeitos na vida real isso está se traduzindo, o establishment ativista basicamente se recusa a ouvir nossas preocupações com a mente aberta.
O que talvez esteja piorando é que a maioria das pessoas trans querem viver uma vida tranquila e não querem falar sobre questões trans em uma grande plataforma que atraia atenção para si mesmas. Isso talvez represente a maioria silenciosa das pessoas trans, e elas praticamente não têm voz contra os ativistas mais barulhentos. Assim, esses ativistas mais barulhentos continuam alegando nos representar como uma comunidade sem serem muito desafiados, e as pessoas na grande mídia, que muitas vezes são bem intencionadas, mas não nos entendem, pensam que o que eles falam representa tudo o que existe em nossa comunidade.
O que me preocupa é que, do jeito que as coisas estão, a situação da comunidade trans está dividida entre 1% e 99%, e continuará assim no futuro próximo. O 1% é composto por ativistas, intelectuais públicos, celebridades, atletas, escritores de sucesso e afins, que recebem acesso sem precedentes aos holofotes nesta nova era de visibilidade trans. Mesmo que eles estejam frequentemente no centro de muita controvérsia e reação, eles ainda recebem muito apoio e admiração dos outros, portanto, no geral, ainda é uma boa vida para eles. Suas vidas são muitas vezes afastadas das necessidades e preocupações das pessoas trans cotidianas, e algumas delas, seja por falta de consciência ou pela necessidade de se manterem interessantes e relevantes, agem de maneiras que causam ressentimento e reação contra a comunidade trans.
Mais uma vez, parte dessa reação será sentida pessoalmente, mas geralmente será mais do que compensada pelo apoio e admiração dos outros. No entanto, o resto da reação recairá sobre os 99%, as pessoas trans comuns que só querem viver suas vidas tranquilas e normais. Essas pessoas trans convivem com um medo constante de que a próxima onda de reação possa resultar na remoção de proteções e direitos existentes que lhes permitem viver em seu nível atual de conforto. Para eles, a perspectiva de viver uma vida tranquila e em paz está sob constante ameaça, como viver em uma ilha que é frequentemente visitada por fortes furacões. À medida que o clima político trans-relacionado fica cada vez mais tóxico, o medo piora, assim como as mudanças climáticas pioram, as pessoas que vivem em ilhas têm cada vez mais medo de furacões poderosos. Para os 99% trans, a vida é impotente e não parece melhorar tão cedo.
Não me entenda mal. Não estou dizendo que ter figuras públicas da comunidade trans em holofotes seja uma coisa ruim. Certamente precisa haver algumas pessoas dispostas a sacrificar sua privacidade para entrar no centro das atenções e representar a comunidade. No entanto, o ponto importante é: que efeitos nossas figuras públicas e ativistas estão tendo na vida das pessoas trans cotidianas? Por exemplo, brigar por causa da linguagem pode trazer um senso de justiça para alguns ativistas, mas também aliena muitas pessoas, porque muitas vezes equivale a desafiar a própria percepção de gênero de pessoas não trans, bem como normas culturais de longa data que são valorizadas por muitos. Esse tipo de ativismo, portanto, causa um ressentimento significativo que pode se transformar em debates sobre direitos trans.
Vale a pena trocar a satisfação desses ativistas pelos direitos civis que permitem que as pessoas trans tenham uma vida tranquila e normal? Porque é isso que eu temo que esteja acontecendo agora. Além disso, algumas causas ativistas podem até ter efeitos nocivos diretos nas vidas trans. Por exemplo, o movimento de longa data que busca “desmedicalizar” a transgeneridade, ou seja, remover a disforia de gênero como uma condição médica, causou ansiedade em muitas pessoas trans, que temem que sua cobertura do plano de saúde para o tratamento com hormônios e cirurgias possa deixar de existir. O ativismo baseado em ideais filosóficos, mas que pode ter consequências deletérias para pessoas trans no mundo real, é algo que realmente não poderíamos ter.
Acredito que o que precisamos é ter figuras públicas trans que realmente pensem no que é melhor para as pessoas trans cotidianas, no que fazem, e ativistas trans que realmente pensem nos impactos reais de seu ativismo. Para conseguir isso, acredito que precisamos de uma massa crítica de pessoas dispostas a ter uma discussão realista sobre quais devem ser nossas prioridades. Eu, pessoalmente, sempre serei uma voz para um conjunto de prioridades "trans realistas", que se concentra nas necessidades das vidas trans no mundo real e como elas podem ser realisticamente garantidas aqui e agora. Mas uma voz não é suficiente. Portanto, se você tiver preocupações semelhantes, não tenha medo de falar. Por favor, não se sinta pressionado a ficar em silêncio, porque algumas pessoas podem não gostar do que você tem a dizer. Somente ao nos manifestarmos, nossos pontos de vista eventualmente formarão uma “massa crítica” na comunidade, onde nossas preocupações não poderão mais ser ignoradas. E só então as coisas terão esperança de mudar. É por essa esperança que continuo trabalhando e falando, e espero que você possa se juntar a mim também, se sentir o mesmo.
TaraElla, autora do texto |