Traduzido de CrossDreamers
Desmascarando o mito da diferença entre o cérebro feminino e o cérebro masculino (e por que não é algo tão simples quanto parece)
Lise Eliot publicou um artigo científico interessante questionando a ideia popular de que o cérebro tem gênero (ou seja, seria diferente entre homens e mulheres). Ela se refere a um novo meta-estudo sobre pesquisa biológica que, segundo ela, mostra que não há diferença entre cérebros masculinos e femininos além do tamanho.
Sou uma grande fã da pesquisadora Lise Eliot, que é professora de neurociência na Chicago Medical School da Rosalind Franklin University of Medicine and Science, em Illinois nos Estados Unidos.
Seu livro Cérebro Azul ou Rosa: O Impacto das Diferenças de Gênero na Educação (2013) me ensinou muito sobre a neurociência moderna e como alguns cientistas adotam uma abordagem muito simplista de como nosso sentimento de gênero é criado.
Eu diria, no entanto, que os argumentos que ela faz questionando essa parte da neurociência não provam que não há componente biológico na identidade de gênero e que as identidades transgênero, portanto, devem ser puramente psicológicas.
Marte vs Vênus
Em um artigo de maio de 2021 na Fast Company, ela escreveu que:
"Todo mundo sabe a diferença entre cérebros masculinos e femininos. Um é tagarela e um pouco nervoso, mas nunca esquece das coisas e cuida bem dos outros. O outro é mais calmo, embora mais impulsivo, e tende a ignorar as fofocas para fazer o seu trabalho.
Isso vem de estereótipos, é claro, mas eles têm uma influência surpreendente sobre a maneira como a ciência do cérebro real é projetada e interpretada. Desde o surgimento da ressonância magnética (normalmente usada para realizar exames no cérebro), os neurocientistas trabalham incessantemente para identificar diferenças entre os cérebros de homens e de mulheres. Esta pesquisa atrai muita atenção porque é muito fácil tentar vincular qualquer descoberta cerebral em particular a alguma diferença de comportamento de gênero.
No entanto, como neurocientista com longa experiência na área, completei recentemente uma análise meticulosa de 30 anos de pesquisa sobre diferenças sexuais no cérebro humano. E o que descobri, com a ajuda de excelentes colaboradores, é que praticamente nenhuma dessas afirmações se provou confiável."
Um conceito zumbi
Ela argumenta que a dicotomia do cérebro masculino contra o cérebro feminino é um conceito zumbi:
"Ainda assim, o “dimorfismo sexual” não morrerá. É um conceito zumbi, com o mais recente renascimento utilizando inteligência artificial para prever se uma determinada varredura cerebral vem de um homem ou de uma mulher.
Os computadores podem fazer isso com 80% a 90% de precisão, apesar de que, essa precisão cai para 60% (probabilidade similar ao de lançar uma moeda) quando você controla adequadamente o tamanho da cabeça. Mais problemático é que esses algoritmos não se traduzem em populações, como europeias versus chinesas. Essa inconsistência mostra que não há características universais que discriminem cérebros masculinos e femininos em humanos – ao contrário dos chifres de veado."
Ela também colocou essas descobertas em um contexto LGBTQ:
"A ausência de características binárias de sexo no cérebro também ressoa com o atual número crescente de pessoas que se identificam como não-binárias, queer, não conformes ou transgêneros. Qualquer que seja a influência que o sexo biológico exerça diretamente nos circuitos do cérebro humano, claramente não é suficiente para explicar os comportamentos multidimensionais que agrupamos sob o complexo fenômeno do gênero.
Em vez de “dimórfico”, o cérebro humano é um órgão sexualmente monomórfico – muito mais parecido com o coração, os rins e os pulmões. Como você já deve ter notado, estes outros órgãos podem ser transplantados entre mulheres e homens com grande sucesso."
O fim da metáfora do computador
Há uma coisa que devemos ter em mente ao ler artigos como este, e é que Eliot está argumentando contra entendimentos simplistas do cérebro, onde os cientistas pensam que podem identificar um lugar físico no cérebro onde homens e mulheres diferem, o que então seria dada a honra de ser a sede da identidade de gênero e/ou vários traços de gênero presumidos.
Por outro lado, os pesquisadores mais psicologicamente orientados tendem a minimizar a parte física do cérebro da equação, discutindo apenas a parte mental. Isso leva a um foco em experiências de vida, trauma e cultura.
Suspeito que muitos estão presos na metáfora do computador, onde a mente é um aplicativo rodando em um wetware (termo extraído da ideia de hardware ou software relacionada ao computador, mas aplicada a formas de vida biológicas). Os biólogos querem encontrar um interruptor em um chip XX/XY que possa explicar as identidades feminina e masculina, enquanto os psicólogos procuram o código relevante no programa.
O fato é que o cérebro não é um computador, pelo menos não no sentido de chip de silício da palavra. Nosso desenvolvimento mental – incluindo aprendizado e personalidade – é o resultado de uma interação entre o software e o wetware. Quando aprendemos, muitas vezes desenvolvemos novas células cerebrais e conexões celulares.
Como Eliot colocou no artigo científico original:
"Dada a evidência abundante de que a experiência altera a estrutura e função neuronal, bem como o crescente conhecimento sobre as influências epigenéticas no desenvolvimento do Sistema Nervoso Central, é impossível discernir o grau em que as diferenças de nível de grupo entre machos e fêmeas humanos são atribuíveis a doenças congênitas fatores sexuais versus aprendizagem socioambiental de gênero, atuando através da neuroplasticidade ao longo da vida (ou seja, a capacidade do cérebro de mudar e desenvolver novas células). "
Há mais em quem somos do que nosso cérebro
Na medida em que faz sentido pensar no cérebro como um computador, estamos falando de uma espécie de "computação distribuída". As memórias não são salvas em chips separados. Sua memória de um determinado evento é distribuída por todo o seu cérebro. Eu não ficaria surpreso se nosso sentimento de gênero fosse disperso de maneira semelhante, na qual olhar para uma seção específica do cérebro seria de ajuda muito mais limitada.
Além disso, a mente humana não reside apenas no cérebro. Nossas emoções – que são uma parte essencial de nosso senso de identidade – estão distribuídas em todo o nosso corpo. Quando estamos felizes, todo o nosso corpo está feliz: nosso pulso acelera, nossas bochechas coram, temos borboletas no estômago. A disforia de gênero e a euforia de gênero não são experiências puramente mentais. Definitivamente, também são experiências corporais, com ciclos de feedback entre o cérebro e o resto do corpo.
O que a experiência das pessoas transgênero pode nos dizer também é isso: a identidade de gênero não pode ser reduzida a estereótipos de gênero. A maneira como alguns pesquisadores do cérebro estão distinguindo identidades masculinas e femininas em pessoas trans é usando listas de quão bem elas aderem aos estereótipos femininos ou masculinos. Isso simplesmente não funciona.
Sabemos agora que a identidade de gênero não está relacionada diretamente com as expressões de gênero, maneirismos, interesses ou habilidades. Uma mulher lésbica transmasculina pode se ver como uma mulher, enquanto um homem trans masculino pode se ver como um homem. De fato, um homem trans “femme” (sim, eles existem!) também pode se sentir como um homem.
Você não pode capturar essa enorme complexidade em exames cerebrais e autópsias cerebrais. Nosso senso de identidade provavelmente não reside em uma parte específica do cérebro. Pode ser uma propriedade sistêmica, distribuída por todo o sistema mente/corpo. Se for esse o caso, não seria menos real.
Caramba, não seria irreal mesmo se fosse baseado apenas em software. Não acho que seja o caso, mas não seria menos real, com certeza.
Isso me leva a acreditar que a maior contribuição de Eliot para o debate mente/corpo não é que ela tenha desmascarado a ideia de que a identidade de gênero tem um lado biológico. Minha própria experiência de vida torna difícil explicar minha identidade transgênero sem esse componente. Mas ela conseguiu derrubar as abordagens mais ingênuas de "pesquisa de gênero no cérebro".
Fonte: Descarte o “dimorfismo”: síntese abrangente de estudos do cérebro humano revela poucas diferenças masculinas além do tamanho por Lise Eliot, Adnan Ahmedb, Hiba Khanb e Julie Patelb (2021)