quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Minha história de destransição e possível retransição de gênero

Traduzido de Sarah H.

Percebo que parte dos textos de pessoas transgênero busca expor a própria experiencia, então aqui está a minha: passei por uma destransição involuntária e terei uma possível retransição.

Nasci em 1975, filho único. Meu pai era engenheiro de aviação, pilotava aviões Jumbo 747, minha mãe era aeromoça e depois largou o emprego quando eu nasci. Eu cresci com o que eles chamam de “pais helicóptero” na Alemanha. Minha mãe sempre estava por perto, e meus pais realmente queriam que seu filho tivesse um futuro brilhante, então eles apoiaram tudo e qualquer coisa que eu quisesse fazer. Eu tinha muitos livros, um microscópio, kits de experimentos eletrônicos, muitas e muitas coisas para brincar e um dos primeiros computadores domésticos lançados (Commodore 64). Na minha juventude, eu tinha cabelos longos e loiros e muitas vezes era confundido com uma menina. Eu não me importava. Eu realmente não me importava, até porque gênero era um conceito meio estranho para mim. Meus pais até me deram uma boneca quando eu quis ter uma, mas no final da adolescência também fizeram questão de deixar claro com o que “meninos” brincam e com o que “meninas” brincam, que cores eles usam e como eles se comportam. Nunca cresci “sabendo” que algo não estava certo, mas, de qualquer maneira, comecei tarde.

As coisas mudaram quando fiquei mais velho, por volta dos 19 anos. Quando eu via uma garota, podia sentir duas reações. Primeiro poderia ser a reação típica de “ah, eu gosto dela”, mas com mais frequência me pegava imaginando como eu ficaria naquele vestido, naquela saia, jeans ou o que quer que ela estivesse vestindo.

Também foi assim que as coisas começaram: uma loja em uma cidade grande por onde passei vendia saias masculinas. Era uma marca alemã bem conhecida, então… embora eu soubesse que “isso não estava certo” (devido aos meus pais), ainda assim comprei aquela saia naquele dia. Minha coleção de itens femininos começou a crescer durante meu tempo na universidade, principalmente as saias. Meus pais estavam pagando por uma universidade privada de elite na Alemanha, comparável a Cambridge ou a Harvard (estudando ciência da computação e administração de empresas). Eu também fui morar nos Estados Unidos por um ano em 1997.

Eu ainda estava me sentindo envergonhado, realmente não sabia o que estava acontecendo. Concluí meus estudos em 2000 aos 25 anos e, com a crescente popularidade da internet, logo entrei em contato com outras pessoas transgênero, também da minha região. Encontrei um grupo local de autoajuda, que recomendou uma esteticista próxima que poderia me montar como mulher. Eu não tinha certeza se deveria fazer algo assim, afinal, era como um fruto proibido. Apesar disso... Liguei para ela, ela foi bastante simpática, marquei uma consulta e fui “transformada em menina” por ela. Bem, mais ou menos. Eu já havia comprado uma peruca baratinha para a ocasião, e assim que ela arrumou tudo, ela me deu um espelhinho de mão para eu dar uma olhada. Ainda hojeme recordo daquele momento... Eu apenas tinha que sorrir. Era uma sensação de felicidade que eu não tinha experimentado até então.


2001: Primeiro passeio

Então... a única coisa que eu sabia naquela época era que eu provavelmente estava louco. Ou era travesti. Ou ambos. De qualquer forma: havia algo muito ruim em mim. Apesar de gostar de crossdressing, nunca me aventurei muito... até o carnaval de 2001, que planejei com muito carinho — looks, maquiagem (feita pela minha esteticista), local onde ir. Foi a primeira vez que saí completamente montada, e passei. Só não era passável de um jeito que você vê alguém na rua e não presta muita atenção. Eu me senti passável ao entrar em um clube onde havia alguém do lado de fora pedindo para você pagar 10 USD pela entrada - se você fosse homem. Eu estava tentando entregar minha nota de 10 dólares para a senhora na entrada, e ela disse “oh, é noite das mulheres, as mulheres estão livres para entrar hoje”. Minha voz ainda é o que me denuncia, tanto naquela época como também hoje em dia. Eu não queria entrar de graça porque na realidade eu era um homem vestido de mulher. Então eu disse a ela que só tinha me montado para o carnaval. Você tinha que ter visto o rosto dela. Ela ficou totalmente surpresa e me disse “Eu nunca teria adivinhado. Realmente. Bom... você ficou tão bem que não vou cobrar de você. Entre!”

Aqueles poucos dias durante o carnaval foram incríveis. Mas também me fez perceber outra coisa: uma vez que tive que voltar ao meu eu masculino, não parecia mais certo. Mesmo assim... eu não saí como Sarah depois disso. Mas eu tinha que fazer alguma coisa. Perguntando ao grupo de autoajuda, todos me disseram que o laser seria um bom passo, algo que eu bem que poderia fazer. Então comecei a depilação a laser em 2001 e comecei a deixar meu cabelo crescer. Em 2002, encontrei um terapeuta para me ajudar a resolver os meus problemas. Fiz vários testes para ver se eu era apenas um crossdresser ou talvez um transexual (um termo que não é mais usado hoje, mas era amplamente usado para fins de diagnóstico naquela época), e todos os testes que fiz deram mais de 90% de certeza de que eu era trans. Depois de um tempo, mudei do laser para a eletrólise, que era uma maneira mais eficiente e dolorosa de depilar os pêlos (fiz cerca de 65 horas de seções na época).

Em outubro de 2003, finalmente consegui a prescrição de hormônios, mas não tinha certeza se estava pronta para dar esse passo. Eu sabia que meus pais, profundamente conservadores, ficariam bravos comigo. Além disso, senti que precisava me livrar de mais alguma sombra da barba.

Eu na minha esteticista em 2003, pouco antes de sair para o carnaval.
Cabelo próprio com extensões.
Não havia um aplicativo naquela época, então sem filtro, sem photoshop, nada.

A partir de 2004, comecei a sair com mais frequência como Sarah. Meu cabelo estava comprido o suficiente (também fiz extensões), tinha um estilo feminino e a sombra da minha barba não era mais tão perceptível. Nos meses seguintes, eu estava vivendo meio período como Sarah. Em 17 de agosto de 2004, comecei a terapia hormonal. Logo depois, notei os efeitos. Do ponto de vista das “emoções”, foi como mudar de um filme em preto e branco para um em tecnicolor. Coisas engraçadas, agradáveis e positivas se tornaram coisas que eu poderia derramar lágrimas de alegria, coisas que eram negativas também poderiam me fazer chorar. Minha pele mudou, minhas unhas ficaram mais quebradiças, meus seios começaram a crescer. Eu gostei de tudo. Depois de apenas 3 meses de tratamento, eu estava visitando uma loja de ferragens, apenas vestida com jeans e camiseta, sem tentar passar, e acabei sendo tratado como uma mulher. Foi incrível.

Ainda assim... eu não havia assumido isso para os meus pais. Eu havia desenvolvido meu próprio plano mestre, agendado uma consulta com o renomado Dr. Ousterhout em São Francisco para Cirurgia de Feminização Facial e já havia reservado hotel e voos para o início de 2005. Fiz uma tomografia computadorizada do meu crânio em uma clínica alemã, então ele poderia ver em quais áreas do meu rosto ele precisaria trabalhar. Meu terapeuta sugeriu que eu deveria falar com meus pais antes de voar para São Francisco.


Me abrindo para os meus pais

No início de dezembro de 2004, eu me assumi para meus pais. Eles ficaram furiosos. Eu esperava que eles me deserdassem, ou simplesmente parassem de se comunicar comigo. Mas eles enlouqueceram e fizeram de tudo para "acabar com essa loucura". Eu ainda morava no apartamento deles naquela época (cerca de 40 minutos de carro até a casa deles) e eles tinham uma chave reserva. Eles foram na minha casa e vasculharam tudo - e encontraram as reservas do meu hotel, voos e a consulta com o Dr. Ousterhout. Eles ligaram para o Dr. Ousterhout e cancelaram minha consulta. Cancelaram meu hotel e me pediram para cancelar meus voos, pois eles não conseguiram. Ligaram para meu terapeuta, meu médico. Eles também ameaçaram todos dizendo que iriam processá-los por negligência. Pediram a um segundo terapeuta que me encontrasse para “me convencer do contrário”. Ligaram para meus amigos, velhos colegas de escola, meu antigo professor, meu superior do serviço militar... Enfim, depois disso eu passei a receber ligações de diversas pessoas tentando me convencer de que o que eu fazia não estava certo.

Em janeiro, meu pai passou mal, vomitou sangue no banheiro e desmaiou. Ele foi levado ao hospital, com um forte sangramento estomacal. Na verdade ele sempre teve problemas com o estômago, então o estresse que eu causei talvez tenha sido a gota d'água... ainda assim, os médicos me disseram que o que quer que estivesse causando tanto estresse nele teria que parar imediatamente, caso contrário meu pai poderia morrer.

Com isso eu acabei me sentindo responsável pela situação do meu pai. Minha mãe ficou uma pilha de nervos em questão de semanas, enquanto meu pai estava no hospital. Minha impressão era que eu estava matando meus pais, que - até então - sempre fizeram o melhor que podiam por mim. Achei que talvez fosse realmente errado o que eu estava fazendo. Naquele momento eu ainda estava usando hormônios e também me tornei um desastre emocional. Eu chorava tarde da noite, de manhã, durante o dia, às vezes enquanto estava no banheiro do trabalho. Eu não estava preparado para o tsunami emocional que meus pais causaram.

Resolvi pausar a terapia hormonal. O que eu não sabia na época: eu simplesmente destransicionei.

Os meses seguintes foram difíceis, para dizer no mínimo. Ainda me lembro de estar sentado no banheiro, com a lâmina de barbear na mão, chorando porque não queria mais viver, mas também chorando porque não conseguia me cortar. Eu estava falhando na transição e falhando em colocar um fim nisso tudo. Eu não era bom em nada.

Levei meses para me recuperar a um ponto em que tudo estava de volta a uma situação neutra e despreocupada com a minha vida. Neste momento meus pais passaram a controlar a maioria dos aspectos da minha vida: eles ligavam com frequência, faziam visitas surpresa para saber como eu estava e me pediam para cortar o cabelo.

Meus pais ficaram felizes - eles pensaram que haviam resolvido o problema de uma vez por todas. Eles também insistiram que eu deveria mudar de emprego. Muitos dos colegas da agência de marketing onde eu trabalhava sabiam da Sarah, alguns até haviam saído comigo montada e me apoiaram. Então meus pais queriam me tirar dessa “influência ruim”.


2006 em diante

Mudei de emprego, fui trabalhar na minha primeira função de gerenciamento em uma grande empresa de serviços financeiros. Meu cabelo voltou a ficar curto, como mandavam meus pais. Eu trabalhava longas horas, muitas vezes saía depois das 20h ou 21h, só para não ter que lidar com meus pais ou com minha situação. O diretor administrativo percebeu o quanto eu trabalhava - em termos de carreira, isso ajudou. Fui promovido algumas vezes, ganhei mais dinheiro. Mas eu não me sentia feliz.

Eu nunca namorei. Como explicar que no fundo eu nunca quis ficar assim? Como um relacionamento pode funcionar, se você no fundo está infeliz? Fiquei solteiro e solitário. Nunca tive filhos, nem namorada, nem esposa. Também sem vida real, concentrei-me na minha carreira. Meu novo terapeuta me apontou o fato de que não havia muita coisa acontecendo em minha vida além da minha carreira. Triste, mas verdadeiro.

Apesar dos meus pais me pedirem para me livrar de todas as roupas femininas, eu aluguei uma unidade de armazenamento e coloquei várias caixas de mudança com minhas roupas lá dentro. De vez em quando, no final de semana, eu ia lá, levava uma caixa para casa, me produzia, colocava tudo de volta na caixa e devolvia para o depósito. Até que em um ponto as coisas simplesmente não se encaixavam mais.

Os anos passaram e ganhei mais dinheiro. Naquela época os designers de moda estavam fazendo coisas bobas... alguns itens masculinos eram, na verdade, bastante femininos. Então… se eu quisesse vestir uma blusa de seda, eu só tinha que comprar a última moda masculina da Gucci, era simples assim. Mas era muito caro. Comecei a comprar coisas de grife em 2009: botinhas da Dior com salto (para homens), camisas sociais masculinas de seda da Gucci, casacos unissex do designer britânico Gareth Pugh e afins. Afinal, isso era moda masculina, certo?

Não demorou muito para eu voltar a comprar roupas de todos os gêneros. Meus pais também não estavam mais me observando tão de perto, e eu sempre me vestia com jeans masculinos padrão e uma camisa polo bonita quando os visitava.


2014: Liberdade recém-descoberta em roupas não-binárias

Em 2014, um headhunter me ofereceu um emprego em uma cidade a cerca de 2 horas de carro da casa dos meus pais, em Colônia. Colônia é conhecida por ter uma comunidade LGBTQ muito ativa e, depois de me mudar para lá, meu guarda-roupa literalmente explodiu. Ainda assim, nunca mais saí como Sarah, esse trauma foi muito pesado. Mas enquanto não estava no trabalho, eu me vestia muito feminina e ninguém se importava. 70% das minhas roupas eram femininas, e é assim que me visto quando não estou no trabalho. Essa estratégia de lidar funcionou por um bom tempo. Ainda assim... eu não estava muito feliz. As pessoas interagiam comigo como um cara de saia, não como uma mulher de saia. Mas eu meio que aceitei essa fé.

A empresa de Colônia foi fundida com outra e, nesse processo, sentia-se que meus colegas ficavam ansiosos, sem saber o que o futuro reservava. Eu não queria ficar naquele ambiente depressivo, então procurei um novo emprego e me mudei para uma cidade muito menor no sul da Alemanha e me tornei diretor executivo de dados de uma empresa de médio porte. Uma semana no novo emprego, fui apresentado em uma reunião municipal como o novo diretor, transmitido para todas as lojas físicas daquela empresa na Alemanha.

Mais tarde naquela semana, fui a um supermercado depois do trabalho para comprar alguns mantimentos. “Ei [nome masculino]... você também está fazendo compras aqui?!”… estava sendo perguntado por alguém que eu nunca tinha visto em toda a minha vida. Ele se apresentou como alguém de uma loja local e comentou que tinha assistido a transmissão. Nas semanas posteriores à minha apresentação, era como na fábula “A Lebre e o Ouriço” — onde quer que eu fosse, havia alguém que me conhecia daquela empresa.

Vestir não-binário não era mais possível. O pouco de liberdade que me mantinha em sã consciência desapareceu em um instante. Aí veio a pandemia, todo mundo teve que ficar em casa mesmo. A empresa estava com graves dificuldades financeiras, tivemos que demitir 50% de nossa equipe. Quando você compara fotos minhas de 2018 e de 2021, pode ver que envelheci consideravelmente nesses anos de pandemia. Estar na liderança paga bem, mas a menos que você seja um idiota insensível, ter que demitir alguém que você conhece e com quem já trabalhou sempre cobra um preço.


Avanço rápido para meados de 2022.

Um vídeo do TikTok me mostrou o quanto você pode transformar a foto de uma mulher de aparência mediana em uma modelo usando o FaceApp. Eu queria experimentar isso, então tirei uma foto minha e a coloquei no aplicativo. Dizia “Mudar de gênero” e, depois de apertar o botão, uma mistura entre eu e a ex-chanceler Angela Merkel de repente apareceu na tela. Isso parecia muito bobo. O aplicativo não conseguia simular cabelo onde não havia nenhum, para começar.

Procurei nas minhas caixas e encontrei a minha peruca, que comprei há alguns meses por capricho na Amazon. Loiro escuro, cabelo comprido. Tirei outra foto e passei pelo aplicativo.

Resultado do FaceApp de uma foto de homem para mulher.
Eu nem me barbeei para esta foto.

Esta era eu, de alguma forma parecendo um pouco mais jovem, e como mulher. Foi como ser atingida por uma bola de demolição: sentada na minha frente, depois de mais remoção de barba e cirurgia de feminização facial, estava meu eu feminino, talvez 10 anos mais jovem. Eu poderia ter parecido e vivido assim por 20 anos. O que eu fiz? Por que eu parei com isso? Eu devia estar louco. Esta noite foi a primeira vez que chorei em 20 anos.

Mas isso não era real, certo? Era o FaceApp. Eu poderia parecer remotamente assim? Fui a uma loja de cosméticos local no fim de semana após minha epifania do FaceApp, com uma impressão daquela foto do FaceApp, expliquei que era trans e que queria comprar um conjunto básico de hidratante, corretivo, base, pó compacto, blush, batom e alguns apetrechos. A garota da loja ficou pasma no começo, mas logo se mostrou bastante amigável quando percebeu que eu conhecia os truques do comércio.

Cheguei em casa com uma sacola cheia de coisas, experimentei, coloquei a peruca e me olhei no espelho. Desta vez, vi um homem de 47 anos, ainda masculino, mas também feminino refletido no espelho. É incrível o que o cérebro humano faz quando você fica na frente de um espelho. Aparentemente, tenho um aplicativo em meu cérebro semelhante ao FaceApp do meu iPhone, porque pude ver claramente que me aproximei muito da imagem do FaceApp. Os aspectos que todo mundo reconheceria como de um homem, meu cérebro suavizou. Eu estava me sentindo feliz pela primeira vez em anos.

As sobrancelhas estavam parcialmente grisalhas, mas isso poderia ser mudado. A sombra da barba me incomodou (a barba voltou nos últimos anos sem fazer a manutenção do laser). Eu tinha que fazer algo sobre isso. A Sarah estava de volta - e ela queria mais.

Nas semanas seguintes, percebi que, desta vez, eu não tinha tanta certeza se conseguiria colocar o gênio de volta na garrafa. Mesmo em 2005, pensei que era tarde demais para fazer a transição. Estou com 47 anos e vou fazer 48 em abril de 2023. Não tenho muito cabelo sobrando, minha pele envelheceu, assim como o meu corpo. Então por que me importar? Eu sabia que não queria viver como um cara, mas também sabia que minha oportunidade de viver escondido provavelmente passou para sempre.

Fiquei deprimido. A certa altura, fiquei tão deprimido que até pesquisei maneiras de suicídio que não envolvessem cortes. Dica para os meus leitores: se você pensar em se suicidar, busque ajuda ou alguém com quem você possa conversar.

Naquela noite em particular, liguei para uma colega de trabalho por meio do vídeo da equipe e falei com ela. Mostrei a ela fotos antigas minhas, as fotos do FaceApp, as fotos recém-tiradas como Sarah usando um vestido. Chorei de novo durante aquela ligação. Ela conversou comigo por 3 horas e aliviou boa parte da minha depressão - eu provavelmente não estaria aqui se não fosse por essa ligação. 3 horas depois, eu tinha uma nova amiga no trabalho em um nível muito diferente.

Procurei um terapeuta e encontrei um que fica a pouco mais de uma hora daqui. Eu me perguntei se deveria visitá-la no modo de menino, vestido de forma não binária... ou como Sarah. O que seria uma espécie de reestreia, depois de todos esses anos.

Resolvi visitá-la como Sarah. Foi a primeira vez que usei um vestido de verão, com maquiagem completa e peruca. Tive que caminhar até o consultório, uma caminhada bastante longa, pois não havia vaga para estacionar por perto. Ninguém pareceu notar. Nem uma pessoa. E eu nem estava usando máscara facial. Talvez fosse a roupa completa, talvez eles não se importem com pessoas trans hoje em dia, sei lá. Parecia como a minha primeira vez durante o carnaval de 2001.


2023

Foto de novembro de 2022, ainda sem hormônios, mas quase sem barba.

Como eu disse, a Sarah está de volta.

Tive resultados ruins com a depilação, então entrei em contato com a minha antiga eletrologista, que ficou feliz em me ouvir novamente e já removeu praticamente toda a minha barba com apenas 6 sessões.

Não fui apenas em uma sessão na minha terapeuta como Sarah... sempre que posso, agora é Sarah. Não no trabalho, mas para todo o resto: Sarah.

Tenho agendado uma consulta no endocrinologista para meados de fevereiro de 2023. Apesar de ainda não ter a prescrição oficial da minha terapeuta (ela insiste em fazer o mínimo de 12 sessões antes de dar a prescrição), espero que ela apoie o reinício da terapia hormonal logo.


Dúvida

Ainda há dias em que duvido de mim mesmo. Estou muito atrasado? Eu sou realmente transgênero? Quais são as hipóteses? Não é loucura reiniciar isso aos 47/48 anos? Provavelmente vou perder meu emprego e nunca mais encontrar algo que me pague tão bem. Me pergunto isso nos dias em que estou totalmente deprimido. Tudo parece tão sem sentido.

Então, novamente, vejo meus pais. Meu pai parece estar começando a sofrer de demência, pelo menos há alguns sinais precoces (assim como foi com o meu avô). Minha mãe recentemente criou sua própria conta no Twitter (com um nome falso). É a primeira vez que consigo ler o que ela realmente pensa (é como uma ligação direta com o cérebro dela) — e ficou claro que ela é MUITO conservadora. Ela também fez 3 postagens sobre transgênero e, embora estejamos na Alemanha, sua visão pode ser resumida em: O que Donald Trump diz sobre os direitos das pessoas transgênero. Essa é a maneira dela de pensar.

Obrigado mãe.

Você está tornando muito difícil amar você hoje em dia.

E eu não tenho mais tanta certeza se realmente faço questão.


… e certamente:

Olhando para mim mesmo, não quero estar em meu leito de morte mais tarde, olhando para trás na minha vida e me arrependendo de nunca ter feito a transição. Se meu cérebro se deteriorar na mesma proporção que o cérebro do meu avô/pai, ainda tenho 23 bons anos pela frente. Existe um livro sobre arrependimentos. O arrependimento número um é o mais comum:

“Eu gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida fiel a mim mesmo, não a vida que os outros esperavam de mim.”

Acho que cheguei a um ponto em minha vida em que percebi que só tenho esta vida e que a única coisa que foi tirada de mim décadas atrás precisa ser consertada agora. Por mais triste que pareça, reiniciar a transição seria mais fácil se meus pais já tivessem falecido.

Outro colega com quem também saí me perguntou há alguns dias se eu reiniciaria os hormônios (se o médico concordasse). Apesar de toda a insegurança que tenho, ainda na dúvida se é a coisa certa a fazer, sei de uma coisa: se eu não tentar reiniciar a TRH, ela vai me assombrar até o fim da minha vida.

A única coisa que temo: assim que começar de novo e me sentir da mesma forma que me sentia há duas décadas, provavelmente não vou querer parar nunca mais.

Como Charles Dickens escreveu:
“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a época da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero.”

Se você é transgênero hoje, as chances são altas de que você possa se autodiagnosticar na juventude. As chances são de que no ano de 2023 você esteja recebendo um bom apoio de terapeutas, tenha acesso a hormônios e bloqueadores, que o emprego esteja se tornando mais fácil e que você tenha amigos e familiares que (espero) te apoiem.

Mas o que também vejo: também estamos vivendo um dos piores momentos para ser transgênero. Veja o discurso de Donald Trump sobre o que ele queria fazer com as pessoas trans se fosse reeleito. Veja o ódio que você encontra na internet quando alguém é pró-trans. Veja a violência contra as pessoas trans.

É esse medo que eu tenho: ser visivelmente trans em um mundo que não progrediu muito nos últimos 20 anos, não ser aceito pelo que sou e trocar ódio de mim mesmo pelo ódio dos outros.

Ufa. Você conseguiu. Desculpe pelo texto longo.

1 Comentário(s)
Comentário(s)

Um comentário:

Tammilee.tillison@gmail disse...

Relato pungente e doloroso de alguém que deseja ardentemente algo mas a realidade a empurra em outra direção.

Interessante ressaltar o contraste entre a aspiração de vida - quando ela diz sobre " uma sensação de felicidade que eu não tinha experimentado até então" quando foi transformada em menina - e o comportamento que a vida lhe impôs.
Triste e comovente.