Do filme A Garota Dinamarquesa (2015) |
Traduzido de Chichi A
Existe algo que todas as pessoas que se identificam com mulheres têm em comum: a experiência de ser mulher socialmente. A diferença é que as mulheres cisgênero vivenciam essa bagagem muito antes das mulheres transgênero. Em um mundo hoje inundado de transfobia, meu coração sangra. Algumas ideologias feministas que poderiam proteger todas mulheres agora estão atuando de maneira excludente. Mas como é a vida sendo transgênero em um mundo machista? Vamos discutir sobre isso.
Quando crianças, nossos corações eram muito inocentes. Adorávamos os brinquedos e a atenção que nossos pais nos davam. Mas até as crianças reconhecem o gênero. Esse reconhecimento começa quando eles observam seus pais. O papai é mais masculino e a mamãe tem um fenótipo feminino mais suave. Normalmente, os pais também começam inculcando os papéis de gênero nas crianças por meio de palavras de afirmação como: “Você é a garotinha do papai” ou “Esse é o garotão do papai”. De fato as crianças são tratadas de forma diferente com base em seu sexo biológico. Se você reparar no mercado de brinquedos normalmente vai notar bonecas hiper-femininas e conjuntos de utensílios domésticos de brinquedo no setor rosa de meninas e bonecos de heróis hiper-masculinos e brinquedos de ciência e tecnologia no setor azul de meninos. A maioria das crianças se encaixa nesses papéis e comportamentos de gênero, no entanto outras não. Para aquelas crianças que não se encaixam nesse papel, a sociedade tende a excluí-las desde muito cedo. Inclusive isso está nas palavras que professores e colegas usam para descrevê-los. Se eles têm pais religiosos, eles enfrentam até mesmo ódio por suas identidades dentro de casa. As crianças transgênero ouvem palavras como: “Você é um menino, pare de agir como uma menina” ou “Você é uma menina, vá brincar com a sua boneca”.
As mulheres cisgênero enfrentam padrões duplos da sociedade desde cedo, mas o mesmo acontece com as crianças transgênero. O problema é que a sociedade não valoriza a feminilidade. Nas mulheres cisgênero, no entanto, a sociedade é tolerante com a feminilidade. Em mulheres transgênero, a sociedade desaprova isso. A sociedade tolera a feminilidade nas mulheres cisgênero para apaziguar o olhar masculino. Uma mulher cisgênero “criadora de bebês” é o objetivo final de muitas culturas, e eles criam essas mulheres cisgênero e as moldam para desejar a validade masculina. Para as mulheres transgênero, que por padrão não podem ter filhos da maneira tradicional, o ódio pela feminilidade é muito aparente.
Então é isso. Temos dois grupos de mulheres. Em um grupo, a feminilidade é aceitável, e essas mulheres devem aspirar ao olhar masculino e à validade. No outro grupo, a feminilidade é vista como errada porque tal feminilidade não se encaixa nos “padrões da sociedade”. Se ela não está fazendo bebês e sendo uma mãe e esposa amorosa, por que ela está se apresentando como uma mulher? Esse processo cognitivo é o ponto de pensamento de muitos transfóbicos, e acho que é meu trabalho fazer meus leitores entenderem essa dinâmica.
Já ouvi muitos pontos de discussão usados por algumas feministas para despojar as crianças transgênero de suas identidades. Muitas palavras como: “Você desfrutou do privilégio masculino; as mulheres cisgênero não tinham isso.” E eu respondo agora mesmo com: “Crianças não conformes ao gênero designadas como homens no nascimento não desfrutam de nenhum privilégio masculino”. Lembro-me de uma moça me dizer: “Pelo menos você não foi molestado ou violado quando criança; portanto, de algum modo você deve ter desfrutado do privilégio masculino." Mais uma vez, ela estava confundindo a sexualidade dos pedófilos e equiparando-a ao privilégio masculino. Em vez de evitar as muitas culturas do mundo que permitiram que pedófilos heterossexuais continuassem violando crianças, ela comparou a ausência de um canal vaginal natal em mim, que causou os abusos sexuais em mulheres cisgênero como tendo privilégio masculino.
Crianças transexuais são odiadas simplesmente por serem femininas. Sua feminilidade e seus comportamentos não são tão fáceis de esconder. Como uma criança esconderia as partes bonitas de si mesma? Por que estamos ensinando crianças transgênero a serem homens? Pelo bem das crianças transgênero que tiveram uma infância turbulenta, direi novamente: “As crianças transgênero designadas como homens ao nascer não desfrutam de nenhum privilégio masculino”. Elas podem ter sido criadas de forma diferente das mulheres cisgênero, mas, em vez de culpar o “privilégio masculino”, que tal começarmos a questionar por que essa sociedade é tão rígida quanto à conformidade de gênero? Por que os pais estão remodelando, intimidando e forçando as crianças a desempenhar o gênero de uma maneira diferente de quem elas são? Onde estava o meu privilégio masculino quando estranhos me xingavam de palavras depreciativas em público?
Onde estava o privilégio durante todo o bullying escolar que passei? Onde estava quando fui condenado ao ostracismo e todos os pais disseram a seus filhos para não ficarem perto de mim porque eu estava visivelmente em desacordo com o meu gênero? Para onde foi meu privilégio masculino?
As mulheres transgênero enfrentam sexismo primeiro por serem mulheres e depois por serem transgênero. A realidade de ser uma mulher, uma mulher transgênero, é sempre cuidar de si mesma porque as leis não o farão. Com mulheres trans, não há frouxidão. Devemos estar atentas em nosso desempenho, em nossa apresentação e em todos os aspectos da vida, porque a sociedade eleva os padrões de feminilidade quando se trata de nós. Sempre há sorrisos e comentários sexistas, e as pessoas nem percebem que isso é misoginia. O que mais dói é quando mulheres cisgênero usam palavras como “mulher natural” ou “mulheres com útero” ou “mulheres que menstruam” para criar uma cunha. Nunca imaginei que viveria em um século em que mulheres estão tentando rebaixar outras mulheres, especialmente o tipo de mulher mais vulnerável por essa maneira.
Posso discutir a realidade transgênero sem apontar a obsessão que as pessoas têm com nossos órgãos privados? Podemos esquecer as cotas dos banheiros? Podemos esquecer a referência de Dave Chapelle à genitália pós-operatória como produzindo “suco de beterraba” ao invés de sangue? Que tal aqueles dias em que nossa disforia é exacerbada pela forma como essa sociedade nos trata continuamente? Mais uma vez, de fato não há nenhum desconto para as mulheres transgênero. Como profissional de saúde que cuida das partes femininas como parte do meu trabalho, já vi diferentes tipos e tamanhos. Não há justificativa para as críticas que recebemos quando as pessoas percebem que estamos em pós-operatório e como essas pessoas continuamente se referem aos nossos órgãos como mutilados. Ser uma mulher transgênero nesta sociedade é um desafio. Meu coração está com as minhas irmãs transgênero por cada ódio que elas têm para enfrentar. Eu tive meu quinhão.
Vou terminar o artigo com uma história que aconteceu comigo recentemente. Era uma sexta-feira quente e sentei-me debaixo de uma árvore para relaxar. Logo depois, saí daquela posição e esqueci minha bolsa. Então um homem de meia-idade trouxe para mim e começou a fazer comentários sobre como a minha bunda era bonita. Infelizmente, estou acostumada com esses comentários de homens. Por isso, agradeci amigavelmente a ele e continuei navegando nas redes sociais. Ele então se dirigiu para onde eu estava, sentou-se e começou a fazer perguntas intrusivas. Logo percebi que ele tinha visto uma identidade minha de Oklahoma de muito tempo atrás. Eu já era feminina, apresentando cabelos longos e cacheados, mas o gênero dizia “M”. Ele então conduziu a conversa para a intimidade, me perguntando se eu queria ter um bom momento picante junto com ele. Então eu sentei meio afobada e visivelmente irritada. Todos os dias enfrento a atenção não solicitada de homens, muitos dos quais têm tendências masculinas muito frágeis. Alguns dias, dou meu número e não respondo ao texto. Em outros dias, como agora, digo a eles que sou transgênero, ou eles descobrem por meio de uma identidade antiga, assim como ele, e deixam a conversa repleta de pensamentos e ações carnais que eles gostariam de fazer comigo. Logo pedi licença, peguei minha bolsa e saí enquanto ele estava sentado lá, o tempo todo dizendo em voz alta: “Garota, que bunda grande. Meu Deus, caramba”.
Essa é a realidade de ser uma mulher transgênero em um mundo que assumiu que as mulheres cisgênero são apenas maquinas que fabricam bebês. Portanto, quando você não pode dar à luz um bebê para eles, mas é bonita o suficiente, deveria se submeter aos desejos carnais deles. Meu corpo nunca será usado ou violado dessa forma. Eu não fiz a transição e vim até aqui para ser uma amante ou para fazer parte de uma coleção íntima rara e secreta. Eu não sou uma boneca de porcelana, e mulheres trans também não são bonecas de porcelana. Mas, novamente, essa é a realidade de ser transgênero.
A mudança real deve vir porque agora, a vida é tão cruel…
Obrigado por você ler.
Chichi A, autora do texto |