quarta-feira, 5 de julho de 2023

A linha tênue entre o crossdresser e o transgênero

Véspera de Ano Novo de 2001, tirada por uma simpática amiga da minha cidade que já faleceu há muito tempo. Obrigado por tudo que você fez por mim, Eva. Que sua alma atormentada descanse em paz.

Traduzido de Michelle Diane Rose

Esse artigo surgiu de uma pergunta do Quora – desta vez parece ser de alguém sincero, até sinceramente curioso. Eu respeito a verdadeira curiosidade. Têm tão pouco disso ultimamente!

Vamos discutir essas nuances, tudo bem?

Hmm, talvez possamos questionar se a condição de transgênero encoraja o crossdressing como um meio de “testar as águas” da transição.

Esse foi justamente o caso para mim. Eu me montava muito raramente quando era adolescente e não tentei novamente até a idade adulta – e mesmo assim, foi muito raramente, a menos que você conte as muitas vezes que subi no palco em uma banda de rock usando maquiagem, salto plataforma, e muitas roupas de cetim e veludo.

Nesse ínterim, antes de tudo isso, eu estava profundamente envolvido com teatro e artes performáticas. Cheguei à idade adulta em meados dos anos 70 e comecei a usar essas técnicas como uma forma de entretenimento – e ninguém se importava se o excêntrico baixista de longos cabelos loiros usava delineador, brincos e vestia tanto cetim preto e renda quanto a Steve Nicks.

Orycon nº 30 (Convenção anual de ficção científica/fantasia de Portland no Oregon), 2008, logo depois que eu saí do armário. Eu fui a muitas convenções de ficção científica naquela época. Foi uma maneira maravilhosa de me misturar com todas as outras pessoas extravagantemente estranhas  e decididamente cisgênero, heteronormativas  que passam grande parte do tempo fantasiando sobre mundos estranhos e personagens notáveis, inclusive super-humanos. O quociente de colírio para os olhos no sábado à noite, especialmente durante o concurso de fantasias, é impressionante.

Isso é se travestir em sua definição clássica? Provavelmente não, já que as primeiras definições de crossdressers e travestis incluíam a sexualidade como base da experiência. Eu não sentia essa parte sexual. Foi apenas uma expressão de quem eu era na época. Deve-se notar, no entanto, que muitos crossdressers hoje também se montam apenas como expressão pessoal de sua identidade interior. Eles simplesmente não estão interessados em tornar esse eu interior permanentemente público.

Uma das minhas últimas bandas de sucesso, Puppetshow – com alguns amigos sentados na platéia.

A vida de um roqueiro itinerante é uma aventura principalmente para jovens. À medida que envelheci, acabei me aposentando da estrada depois quase 15 anos de apresentações ao vivo. Por três vezes me aposentei. Para mim, essa experiencia se tratava principalmente da criatividade da música, não dos aspectos femininos do meu travestismo.

Continuei sendo convidado para essas extravagâncias ao ar livre organizadas pelo meu afilhado. (O cara careca e barbudo com óculos de sol na extrema direita.) Eu estava procurando um visual grunge/riot chic e não ficou tão gótico quanto eu planejava, principalmente porque estava muito quente nesse dia para cetim preto e veludo! Nós nos chamávamos de “The Go Betweens” porque “Butthole Surfers” já estava sendo usado.

Depois do meu divórcio e do fracasso dos meus investimentos na última banda em que estive em turnê (nos teclados e guitarra desta vez), fiquei com essa coisa dentro de mim que nunca havia sido realmente examinada. Nunca me montei publicamente quando casado, embora minha esposa soubesse do meu pequeno “hobby” desde o início. Ela me fez prometer nunca humilhar ela e sua família aparecendo em um evento familiar en femme. Eu concordei porque me importava profundamente com ela e com a família dela – até que fui confrontado com algumas coisas realmente sombrias sobre eles que ela escondeu de mim por mais de 18 anos.

De mais maneiras do que posso contar, percebi que estava vivendo uma mentira, uma identidade falsa. Mas eu não tinha certeza absoluta, então procurei outro conselheiro e confirmei.

Alguns amigos e colegas queridos em 2008, pouco depois de me assumir publicamente.

Levei três longos anos de exame de consciência com aquela mulher antes de chegarmos a um consenso. Eu sou mulher e sempre fui. Meu perfil genético, feito quando minha esposa e eu não conseguimos conceber um filho, parecia confirmar o diagnóstico psicológico. Ao coletar dados para os aspectos legais de minha transição, descobri muitas coisas estranhas em meu histórico médico mais antigo, que também havia sido ocultado de mim por meu pai e, em certa medida, por minha irmã mais nova, que foi nomeada executora do patrimônio dele quando ele faleceu. (Nossa irmã do meio também é trans – mas ela quase não sobreviveu à transição. Não vou falar sobre ela. Ela já sofreu o suficiente, obrigado.)

Eu e minha irmã mais nova no Natal de 2009, na casa dela em Maryland.

Os dados NÃO somavam “cisgênero, homem branco e heteronormativo”, mas sim “mulher transgênero, lésbica, de ascendência judaica”. (Terei mais confirmação desse último elemento quando os resultados do meu teste de DNA voltarem em algumas semanas.)

Eu “me tornei” transgênero? Não, na verdade eu era e ainda sou uma mulher transgênero. Tenho estado desde que era um gameta em divisão no ventre de minha mãe. Durante toda a minha vida, fui transgênero. Não sinto vergonha nem orgulho por isso. É o que é e eu sou quem eu sou. Eu convivi com essa condição toda a minha vida. Eu simplesmente encontrei maneiras de tornar partes dela aceitáveis para a maioria das outras pessoas.

Quando eu não tinha mais nenhuma responsabilidade ou prestação de contas a ninguém além de mim mesmo, decidi descobrir de uma vez por todas quem eu realmente sou e se havia algo que eu pudesse fazer para aliviar a dor da minha existência.

Parada do Orgulho LGBT, 2009. Não foi a primeira vez que marchei, mas certamente foi a primeira vez que não fui para casa ME desmontar e me vestir como ELE. Na verdade, fiquei por lá até muito depois do anoitecer, curtindo o arco-íris e o colírio para os olhos. Então fui para casa, dormi e acordei ainda como Michelle Diane Rose, legalmente, emocionalmente, socialmente feminina. É uma sensação agradável.

De fato, havia algo que eu poderia fazer e fiz: fiz a transição. Meu único arrependimento é não ter feito isso muito antes, antes de tentar sublimá-lo em arte performática, antes de passar 17 anos em um casamento sem amor com uma mulher que havia escondido suas próprias feridas psicológicas desde o início de nosso relacionamento.

Eu só queria ter feito isso antes – porque fiz mais, aprendi mais, criei mais do que jamais criei como homem. Eu tenho sido bem sucedida fazendo isso. Nunca tive muito sucesso em nada quando fingia ser homem, provavelmente porque nunca acreditei em nada disso.

Meu “estilo” melhorou lentamente nos primeiros anos de transição. Eu estava chegando muito mais próximo do meu eu interior, a pessoa que eu realmente era e não a imitação barata que eu tentava ser como homem.

E eu encontrei o amor. Eu gostaria de pensar que teria conhecido minha amada mesmo se tivesse feito a transição muito antes. Ela nunca me conheceu como homem, mas foi apenas no meu segundo ano do processo de transição que nos conhecemos e eu a coloquei no inferno mais do que algumas vezes. Apesar de tudo isso, ela ainda me ama e se importa muito comigo. É preciso uma mulher cisgênero muito corajosa para amar uma mulher transgênero, especialmente se ela não tiver muito interesse no encanamento original.


Minha amada no Lambda Literary Awards 2011 em Nova York. Fomos indicadas por seu livro de memórias, “The Color of Sunlight”, na categoria Transgênero Não Ficcional, mas, infelizmente, tive que pedir ao nosso editor ad hoc e crítico, CiCi Eberle, para acompanhá-la porque eu estava numa cama de hospital, me recuperando de uma cirurgia de coração aberto. Não foi uma sensação agradável.
Parada do Orgulho LGBT 2010 em Portland. Na época, ela morava em Montana e me visitava constantemente. Sim, ela marchou conosco. Como aliadas, ela é uma das melhores. Ela lutou ferozmente por nossos direitos, falou em nosso nome inúmeras vezes e não cedeu nem um centímetro, nem mesmo para sua família – que compreensivelmente está bastante perplexa com o fato de sua filha brilhante, uma enfermeira de campo e mãe fabulosamente bem-sucedida, ter decidido investir quinze anos de amor e devoção na comunidade trans, particularmente com uma estranha mulher trans que tem o hábito infeliz de deixar todo mundo desconfortável – exceto ela.
A primeira Parada do Orgulho LGBT em Montana, 2009 em Kalispell, onde ocorreram todos os eventos narrados em “The Color of Sunlight”. As duas mulheres que a acompanham são trans, claro. Eu acho que ela conheceu cerca de duzentas mulheres trans em todo o país – e ficou encantada com cada uma delas.

Pense na minha narrativa como a história de uma mulher trans que, com muita cautela e muito medo, mergulhou os pés nas águas do “oceano do gênero” muitas vezes antes de finalmente ter coragem suficiente para nadar nas correntes rápidas da condição transgênero. É um grande oceano, cheio de tubarões e outros predadores, e é preciso ser rápido e inteligente para evitar se tornar apenas mais uma estatística sombria.


"Recifes de coral e o ecossistema de tirar o fôlego que eles abrigam
O mar salgado e as ondas espumadas
Fluidez de gênero nas profundezas das marés mutáveis
Os animais marinhos que vivem no grande azul
Criaturas encontradas nas profundezas mais profundas."
Uma analogia, ou talvez uma metáfora. Uma alegoria mesmo – se alguém estiver disposto a esticar um pouco as semelhanças.

Sem rodeios, eu estudei, pesquisei, conversei com especialistas e experimentei cuidadosamente antes de engolir a primeira pequena pílula azul esverdeada. (Estou tomando injetáveis hoje em dia. Mais conveniente e muito mais fácil para meu pobre fígado abusado.) Aprendi o máximo que pude sobre isso, passei por todas as etapas legais e médicas necessárias para a transição e deixei um rastro de papel a uma milha largura e 67 anos de comprimento que um poodle francês com dano cerebral (existe algum outro tipo?) poderia seguir.

Como uma tira de Möbius, o gênero parece um emaranhado, pelo menos para aqueles de nós condicionados a vê-lo apenas como duas coisas distintas. É muito mais complicado do que parece e pode até estar muito interligado com todas as expressões de gênero possíveis (oito até agora) para ser entendido como separado. O que, conhecendo tão pouco quanto eu sobre biologia evolutiva e genética (por favor, consulte a Julia Serano no Medium para uma análise mais especializada) pode ser intencional, na medida em que se pode dizer que a Natureza tem intenções.

Já fui glam-rocker, fui crossdresser, fui drag queen e sempre, sempre, sempre fui uma mulher trans.

É o que é e eu sou quem eu sou.

1 Comentário(s)
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Um comentário:

Amigo disse...

Muito pouco comentado é o que cada um de nós traz pela vida toda, da memória fetal e o quanto ela repercute desde a gestação: desde filho sem a prostata, problemas de desenvolvimento do crescimento como escoliose desde a adolescência; situações quando o feto/criança tem o gênero masculino e o esperado tenha sido o oposto! Nomes como Fernanda e Aurélio, sinalizam a mudança da letra final porque o gênero que nasceu a criança possa ter sido divergente do que tiver sido desejado! As vezes parece que o Universo rivaliza tal contexto: quando namorei e fui iniciado por homem com a mesma profissão que meu pai exerceu! Ele que pediu para me conhecer melhor!!! Depois me beijou envolvente que quase cedo a ser penetrado depois do pedido! Sorte que o vigia, depois da última aula na Faculdade a noite, disse que tinha que fechar as salas e ficasse nos beijos!